KARDEC E A
ESCRAVIDÃO
Em O livro dos espíritos, Allan Kardec foi
bem claro ao tratar do assunto. Ao serem questionados, os espíritos
responderam: “É contrária à lei de Deus toda sujeição absoluta de um homem a
outro homem. A escravidão é um abuso de força. Desaparecerão com o progresso,
como gradativamente desaparecerá todos os abusos”. Desse modo, o direito à
liberdade seria um princípio fundamental da doutrina espírita por ser uma lei
divina, logo toda forma de escravidão seria condenável. No entanto, que
interpretação os espíritas fizeram desse ensinamento? As páginas da imprensa
espírita trazem as respostas para essa questão.
No final do século XIX, a imprensa
consolidara-se como um importante veículo difusor de ideias. Havia mais jornais
em circulação e crescia o público leitor. Os espíritas estavam atentos a essas
mudanças e, desde cedo, elegeram os periódicos como um canal de propaganda
espírita. Na década de 1880, circula vam na corte dois importantes periódicos
espíritas: a Revista da Sociedade Acadêmica Deus, Cristo e Caridade e O
Reformador. A imprensa espírita tinha como principal objetivo a divulgação dos
princípios da doutrina e a refutação dos ataques dos detratores. No entanto,
não se omitia em relação às questões em debate no cenário nacional e não foi
diferente quanto à escravidão e sua abolição.
Desde o início, a imprensa espírita assumiu
uma postura contrária à escravidão, mas nem sempre defendeu a abolição. Em
artigo publicado em julho de 1882, na Revista da Sociedade Acadêmica Deus,
Cristo e Caridade, a redação do periódico manifestava-se a favor da emancipação
dos escravos, mas afirmava que “a abolição é prejudicial ao escravo e
perniciosa à sociedade”. No entanto, ao longo da década de 1880, com o avanço
da campanha abolicionista, houve uma mudança de posicionamento. Os espíritas
foram abandonando o tom mais moderado e passaram a defender o fim imediato da
escravidão.
Para os espíritas da corte, a extinção do
cativeiro era uma entre outras reformas fundamentais para o progresso do país,
tais como: o estabelecimento de um Estado laico (uma forma de limitar o ainda
marcante poder da Igreja), a liberdade de consciência, a garantia do acesso à
terra e o estímulo à vinda de imigrantes. Desse modo, além de dialogarem com os
abolicionistas, os espíritas também estavam integrados ao debate político da
época, adotando posicionamentos que os aproximavam de certos agrupamentos
políticos como os “novos liberais”, os “liberais republicanos” e os
“positivistas abolicionistas”.
Nas páginas da imprensa, os espíritas
defenderam o fim da escravidão por via legal, sem estimular agitações ou
revoltas. Seu discurso sempre esteve voltado para os senhores de escravos, os
legisladores e o governo imperial. Em 15 de novembro de 1884, um artigo
publicado no Reformador, assinado com o pseudônimo de Sedora, cobrava da classe
política uma atitude para livrar o país dessa doença: “Façam os estadistas como
os cirurgiões, extirpem o cancro que vicia e corrói o organismo social, acabem
com a escravidão”. Noutras ocasiões, o recurso era apelar ao sentimento cristão
da população, em especial dos senhores, para estimulá-los a conceder alforria
aos seus cativos.
Com a
reencarnação, “o senhor de hoje é o escravo de amanhã”.
Assim como outras correntes abolicionistas,
os espíritas avaliavam o problema da escravidão considerando os aspectos
políticos, econômicos e sociais; no entanto, eles construíram discursos
originais ao analisar a questão do ponto de vista espiritual. Na perspectiva
espírita, a luta contra a escravidão era um movimento que ocorria em dois
planos: no material e no espiritual. Em várias oportunidades, eles rogaram a
assistência da espiritualidade na condução do problema, atribuíram os avanços
obtidos ao apoio dos espíritos desencarnados e divulgaram comunicações
espíritas favoráveis ao fim do cativeiro.
Durante evento, em 1886, que lembrava o
desencarne de Allan Kardec, o orador, Manoel Fernandes Figueira, evocou o
auxílio do mundo espiritual: “Venha toda essa legião de espíritos da América do
Norte para auxiliar a obra da redenção na América do Sul” (Reformador, 1º de
maio de 1886). Figueira pedia a contribuição de alguns ilustres já
desencarnados como Washington, Lincoln, Victor Hugo, Luís Gama e tantos outros
que haviam dado provas de “ardente caridade”. Desse modo, os espíritas
entendiam que a transformação social seria fruto do intercâmbio entre o mundo
terreno e o mundo espiritual.
A reencarnação também foi um argumento
importante para sensibilizar ou mesmo ameaçar os senhores. “Se conheceis a
verdade da multiplicidade das existências humanas, sabereis também que o senhor
de hoje é o escravo de amanhã, como este já foi o dominador da véspera”
(Reformador, 13 de maio de 1885). Na perspectiva espírita, a situação do senhor
era pior do que a do escravo, pois este já estaria expiando suas faltas nesta existência,
enquanto o senhor, ao subjulgar seu irmão, estaria comprometendo seu futuro
espiritual e assumindo novas dívidas perante a justiça divina.
“Podemos, pois, nós que trabalhamos por ser
espíritas, esquivar-nos a auxiliar aqueles que se afanam na grande obra de
redenção dos cativos?” (Reformador, “Emancipação”, 13 de maio de 1885). Tal
pergunta soava como uma convocação. O Reformador, então órgão oficial da
Federação Espírita Brasileira, conclamava os espíritas a cerrar fileiras com os
abolicionistas. Em sucessivos artigos, durante a década de 1880, o periódico
defendeu ser um dever de todo espírita apoiar a causa. Em 15 de julho de 1887,
o compromisso era reforçado: “A nós espíritas que respeitamos o Cristo como o
nosso Mestre, o nosso Modelo e o nosso Chefe cabe o posto de avançada nesta
cruzada bendita de liberdade”. De fato, os espíritas abraçaram a causa.
CARTAS DE
ALFORRIA NOS CENTROS ESPÍRITAS
Durante a campanha abolicionista, as
instituições espíritas da corte mobilizaram-se frequentemente para arrecadar
donativos que poderiam ter como destino o Fundo de Emancipação, ou mesmo a
compra imediata da carta de liberdade. Nas festas organizadas pelos espíritas
nas datas de nascimento e desencarne de Allan Kardec ou no aniversário de um
centro espírita, o ponto alto era a entrega de uma carta de liberdade a um
escravo.
Segundo o historiador Eduardo Silva, no
artigo “Resistência negra, teatro e abolição”, essa prática havia se tornado
comum entre os abolicionistas. Ele afirma que “não houve grande benefício,
festa ou comemoração abolicionista que não se encerrasse com a libertação de um
ou mais escravos, levando os espectadores ao arrebatamento, às lágrimas e ao
convencimento íntimo”.
Havia uma rede envolvendo os espíritas e os
movimentos abolicionistas. Um “grande número de associações libertárias,
beneficentes, abolicionistas, lojas maçônicas e órgãos da imprensa” enviava
seus representantes para os eventos realizados pelas instituições espíritas,
conforme noticiou o Reformador em 15 de maio de 1883. Os espíritas, por sua
vez, marcavam presença nas atividades organizadas por esses grupos e divulgavam
suas ações em seus órgãos de informação.
Em março de 1884, quando a corte mergulhou
em longos dias de festejos para comemorar a abolição da escravidão no Ceará, a
Federação Espírita Brasileira nomeou comissões para representá-la no evento e,
através do Reformador saudou o esforço das sociedades abolicionistas e a
importante vitória conquistada.
Em 13 de maio de 1888, o clima de alegria
que envolveu a cidade do Rio de Janeiro foi ainda maior e se estendeu por uma
semana de comemorações. A extinção da escravidão no Brasil foi um acontecimento
intensamente exaltado nas páginas do Reformador. Ao longo da década de 1880, o
abolicionismo havia deixado de ser uma convicção de algumas lideranças
espíritas para se tornar um posição adotada pelas instituições espíritas da
corte. Desse modo, a imprensa espírita representou o pensamento de uma
coletividade que, além de ser espírita, era abolicionista.
Fonte: LETRA
ESPIRITA
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