A certeza da
vida futura não exclui as apreensões quanto à passagem desta para a outra vida.
Há muita gente que teme não a morte, em si, mas o momento da transição.
Sofremos ou não nessa passagem? Por isso se inquietam, e com razão, visto que
ninguém foge à lei fatal dessa transição. Podemos dispensar-nos de uma viagem
neste mundo, menos essa. Ricos e pobres, devem todos fazê-la, e, por mais
dolorosa que seja a passagem, nem posição nem fortuna poderiam suavizá-la
A
insensibilidade da matéria inerte é um fato, e só a alma experimenta sensações
de dor e de prazer. Durante a vida, toda a desagregação material repercute na
alma, que por este motivo recebe uma impressão mais ou menos dolorosa. É a alma
e não o corpo quem sofre, pois este não é mais que instrumento da dor: - aquela
é o paciente. Após a morte, separada a alma, o corpo pode ser impunemente
mutilado que nada sentirá; aquela, por insulada, nada experimenta da destruição
orgânica. A alma tem sensações próprias cuja fonte não reside na matéria
tangível. O perispírito é o envoltório da alma e não se separa dela nem antes
nem depois da morte. Ele não forma com ela mais que uma só entidade, e nem
mesmo se pode conceber uma sem outro. Durante a vida o fluido perispirítico
penetra o corpo em todas as suas partes e serve de veículo às sensações físicas
da alma, do mesmo modo como esta, por seu intermédio, atua sobre o corpo e
dirige-lhe os movimentos.
A extinção
da vida orgânica acarreta a separação da alma em conseqüência do rompimento do
laço fluídico que a une ao corpo, mas essa separação nunca é brusca.
O fluido
perispiritual só pouco a pouco se desprende de todos os órgãos, de sorte que a
separação só é completa e absoluta quando não mais reste um átomo do
perispírito ligado a uma molécula do corpo. "A sensação dolorosa da alma,
por ocasião da morte, está na razão direta da soma dos pontos de contacto
existentes entre o corpo e o perispírito, e, por conseguinte, também da maior
ou menor dificuldade que apresenta o rompimento." Não é preciso portanto dizer
que, conforme as circunstâncias, a morte pode ser mais ou menos penosa. Estas
circunstâncias é que nos cumpre examinar.
A causa
principal da maior ou menor facilidade de desprendimento é o estado moral da
alma. A afinidade entre o corpo e o perispírito é proporcional ao apego à
matéria, que atinge o seu máximo no homem cujas preocupações dizem respeito
exclusiva e unicamente à vida e gozos materiais. Ao contrário, nas almas puras,
que antecipadamente se identificam com a vida espiritual, o apego é quase nulo.
E desde que a lentidão e a dificuldade do desprendimento estão na razão do grau
de pureza e desmaterialização da alma, de nós somente depende o tornar fácil ou
penoso, agradável ou doloroso, esse desprendimento.
Em se
tratando de morte natural resultante da extinção das forças vitais por velhice
ou doença, o desprendimento opera-se gradualmente; para o homem cuja alma se
desmaterializou e cujos pensamentos se destacam das coisas terrenas, o
desprendimento quase se completa antes da morte real, isto é, ao passo que o
corpo ainda tem vida orgânica, já o Espírito penetra a vida espiritual, apenas
ligado por elo tão frágil que se rompe com a última pancada do coração. Nesta
contingência o Espírito pode ter já recuperado a sua lucidez, de molde a
tornar-se testemunha consciente da extinção da vida do corpo, considerando-se
feliz por tê-lo deixado. Para esse a perturbação é quase nula, ou antes, não
passa de ligeiro sono calmo, do qual desperta com indizível impressão de
esperança e ventura.
No homem
materializado e sensual, que mais viveu do corpo que do Espírito, e para o qual
a vida espiritual nada significa, nem sequer lhe toca o pensamento, tudo
contribui para estreitar os laços materiais, e, quando a morte se aproxima, o
desprendimento, conquanto se opere gradualmente também, demanda contínuos
esforços. As convulsões da agonia são indícios da luta do Espírito, que às
vezes procura romper os elos resistentes, e outras se agarra ao corpo do qual
uma força irresistível o arrebata com violência, molécula por molécula.
Quanto menos
vê o Espírito além da vida corporal, tanto mais se lhe apega, e, assim, sente
que ela lhe foge e quer retê-la; em vez de se abandonar ao movimento que o
empolga, resiste com todas as forças e pode mesmo prolongar a luta por dias,
semanas e meses inteiros.
Certo, nesse
momento o Espírito não possui toda a lucidez, visto como a perturbação de muito
se antecipou à morte; mas nem por isso sofre menos, e o vácuo em que se acha, e
a incerteza do que lhe sucederá, agravam-lhe as angústias. Dá-se por fim a
morte, e nem por isso está tudo terminado; a perturbação continua, ele sente
que vive, mas não define se material, se espiritualmente, luta, e luta ainda,
até que as últimas ligações do perispírito se tenham de todo rompido. A morte
pôs termo a moléstia efetiva, porém, não lhe sustou as conseqüências, e,
enquanto existirem pontos de contacto do perispírito com o corpo, o Espírito
ressente-se e sofre com as suas impressões.
Quão diversa
é a situação do Espírito desmaterializado, mesmo nas enfermidades mais cruéis!
Sendo frágeis os laços fluídicos que o prendem ao corpo, rompem-se suavemente;
depois, a confiança do futuro entrevisto em pensamento ou na realidade, como
sucede algumas vezes, fá-lo encarar a morte qual redenção e as suas
conseqüências como prova, advindo-lhe dai uma calma resignada, que lhe ameniza
o sofrimento.
Após a
morte, rotos os laços, nem uma só reação dolorosa que o afete; o despertar é
lépido, desembaraçado; por sensações únicas: o alívio, a alegria!
Na morte
violenta as sensações não são precisamente as mesmas. Nenhuma desagregação
inicial há começado previamente a separação do perispírito; a vida orgânica em
plena exuberância de força é subitamente aniquilada. Nestas condições, o
desprendimento só começa depois da morte e não pode completar-se rapidamente. O
Espírito, colhido de improviso, fica como que aturdido e sente, e pensa, e
acredita-se vivo, prolongando-se esta ilusão até que compreenda o seu estado.
Este estado intermediário entre a vida corporal e a espiritual é dos mais
interessantes para ser estudado, porque apresenta o espetáculo singular de um
Espírito que julga material o seu corpo fluídico, experimentando ao mesmo tempo
todas as sensações da vida orgânica. Há, além disso, dentro desse caso, uma
série infinita de modalidades que variam segundo os conhecimentos e progressos
morais do Espírito. Para aqueles cuja alma está purificada, a situação pouco
dura, porque já possuem em si como que um desprendimento antecipado, cujo termo
a morte mais súbita não faz senão apressar. Outros há, para os quais a situação
se prolonga por anos inteiros. É uma situação essa muito freqüente até nos
casos de morte comum, que nada tendo de penosa para Espíritos adiantados, se
torna horrível para os atrasados. No suicida, principalmente, excede a toda
expectativa. Preso ao corpo por todas as suas fibras, o perispírito faz
repercutir na alma todas as sensações daquele, com sofrimentos cruciantes.
Fonte: O Céu
e o Inferno. “Allan Kardec”
Nenhum comentário:
Postar um comentário