Ao longo dos anos em que ia a Uberaba conheci muita gente.
Gente boa, gente meio boa e gente menos boa. Algumas o tempo vai apagando
lentamente, mas jamais terá força suficiente para apagar de minhas lembranças a
figura encantadora que vocês vão passar a conhecer.
Numa daquelas madrugadas, quando as reuniões do Grupo
Espírita da Prece se estendiam até ao amanhecer, vi-o pela primeira vez.
Naquela filas quase intermináveis, que se formavam para a despedida ou para uma
última palavrinha ainda que rápida com Chico, ele chamou-me a atenção pela
alegria com que esperava a sua vez. Vinha com passos cansados, o andar trôpego,
a fisionomia abatida, mas seus olhos brilhavam à medida que se aproximava do
médium. Não raro, seu contentamento se traduzia em lágrimas serenas, mas
copiosas. Trajes pobres, descalço, pés rachados, indicando que raramente teriam
conhecido um par de sapatos. Calça azul, camisa verde, com muitos remendos; um
paletó de casimira apertava-lhe o corpo franzino. Pele escura, cabelos
enrolados, nos lábios uma ferida. Chamava-se Jorge. Creio que deve ter tomado
poucos banhos durante toda a vida. Quando se aproximava, seu corpo magro,
sofrido e mal alimentado exalava um odor desagradável. Em sua boca, alguns
raros tocos de dentes, totalmente apodrecidos. Quando falava, seu hálito era
quase insuportável. Ainda que alguém não quisesse, tinha um movimento
instintivo de recuo. Quando se aproximava, tínhamos pressa em dar-lhe algum
trocado para que ele fosse comprar pipoca, doce ou um refrigerante, a fim de que
saísse logo de perto da gente.
Jorge morava com o irmão e a cunhada num bairro muito pobre
- uma favela, quase um cortiço. Seu quarto era um pequeno cômodo anexado ao
barraco do irmão. Algumas telhas, pedaços de tábuas, de plásticos, folhas de
lata emolduravam o seu pequeno espaço. O irmão e a cunhada eram bóias-frias.
Jorge ficava com as crianças. Fazia-lhes mingau, trocava-lhes os panos,
assistia-os. Alma, assim, caridosa acredito que sofresse maus tratos. Muitas
vezes o vi com marcas no rosto e, ainda hoje, fico pensando se aquela ferida
permanente em seu lábio inferior não seria resultante de constantes pancadas.
Pois o Chico conversava com ele, cinco, dez, vinte minutos. Nas primeiras
vezes, pensava: "Meu Deus! Como é que o Chico pode perder tanto tempo com
ele, quando tantas pessoas viajaram milhares de quilômetros e mal pegaram sua
mão?!? Por que será que ele não diminui o tempo do Jorge para dar mais atenção
aos outros?" Somente mais tarde fui entender que a única pessoa capaz de
parar para ouvir o Jorge era ele.
Em casa, o infeliz não tinha com quem conversar; na rua,
ninguém lhe dava atenção. Quase todas as vezes em que lá estive, lá estava ele
também. Assim, por alguns anos, habituei-me a ver aquele estranho personagem
que, aos poucos, me foi cativando. Hoje, passados tantos anos, ao escrever
estas linhas ainda choro. A gente corre o risco de chorar um pouco, quando se
deixou cativar, não é mesmo? Nunca ouvimos de sua boca qualquer palavra de
queixa ou revolta.
Seu diálogo com o paciente médium era comovente e
enternecedor:
- “Jorge, como vai a vida?”
- “Ah, Tio Chico, eu acho a vida uma beleza!”
- “E a viagem, foi boa?”
- “Muito boa, Tio Chico! Eu vim olhando as flores que Deus
plantou no caminho para nos alegrar!”
- “Do que você mais gosta de olhar, Jorge?”
- “O azul do céu, Tio Chico! Às vezes penso que o Sinhô
Jesus tá me espiando por detrás de uma nuvem!”
Depois o visitante falava da briga dos gatos, da goteira que
molhou a cama, do passarinho que estava fazendo ninho no seu telhado. Quando
pensava que tudo havia terminado, o dono da casa ainda dizia:
- “Agora, o nosso Jorge vai declamar alguns versos”.
Eu chegava até a me virar na cadeira, perguntando a mim
mesmo: "Onde é que o Chico arruma tanta paciência?"
Jorge declamava um, dois, quatro versos.
- “Bem, Jorge, agora, para a nossa despedida, declame o
verso que mais gosto.”
- “Qual, tio Chico?”
- “Aquele, da moça!”
- “Ah, Tio Chico! Já me lembrei. Já me lembrei!!!”
Naquelas horas, o centro continuava lotado. As pessoas se
acotovelavam, formando um grande círculo em torno da mesa.
Jorge colocava, então, o colarinho da camisa para fora,
abotoava o único botão de seu surrado paletó, colocava as mãos para trás, à
semelhança de uma criança quando vai declamar na escola, ou perante uma
autoridade, olhava para ver se o estavam observando e sapecava, inflado de
orgulho:
- "Menina, penteia o cabelo. Joga as tranças para a
cacunda. Queira Deus que não te leve de domingo pra segunda!"
Quando terminava, o riso era geral. Ele também sorria. Um
sorriso solto e alegre, mas ainda assim doído, pois a parte inferior de seus
grossos lábios se dilatava, fazendo sangrar a ferida. Aí ele se aproximava do
médium, que lhe dava uma pequena ajuda em dinheiro. Em todos aqueles anos,
nunca consegui ver quanto era. Depois colocava o dinheiro dentro de uma
capanga, onde já havia guardado as pipocas, os doces, dando um nó na alça do
pano. Para se despedir, ele não se abraçava ao Chico: ele se jogava, sim, todo
por inteiro, em cima do Chico! Falava quase dentro do nariz do Chico e eu nunca
o vi ter aquele recuo instintivo como eu tivera tantas vezes.
Beijava-lhe a mão, o qual também beijava a mão e a face
dele, ao que ele retribuía, beijando os dois lados da face do Chico, onde
ficavam manchas de sangue deixadas pela ferida aberta em seus lábios. Nunca vi
o Chico se limpar na presença dele nem depois que ele se tivesse ido. Eu,
muitas vezes, ao chegar à casa dele, molhava um pano e limpava o que passamos a
chamar carinhosamente de "o beijo do Jorge..."
Não saberia dizer quantas vezes pensei em levar um presente
àquele pobre irmão - uma camisa... um par de sapatos... uma blusa.
Infelizmente, fui adiando e o tempo passando. Acabei por não lhe levar nada.
Lembro-me disso com tristeza e as palavras do apóstolo Paulo se fazem mais fortes
nos recessos de minha alma: "Façamos o bem, enquanto temos tempo".
Enquanto temos tempo. De repente, fica tarde demais.
Jorge desencarnou. Desencarnou numa madrugada fria.
Completamente só em seu quarto. Esquecido do mundo, esquecido de todos, mas não
de Deus.
Contou-me o Chico que foi este nosso irmão de pele escura,
cabelos enrolados, ferida nos lábios, pés rachados, mau cheiro e mau hálito
que, ao desencarnar, Jesus Cristo veio pessoalmente buscar. Entrou naquele
quarto de terra batida, retirou Jorge do corpo magro e sofrido, envolto em
trapos imundos, aconchegou-o de encontro ao peito e voou com ele para o espaço,
como se carregasse o mais querido dos seus irmãos!
"Eis que estarei convosco até o fim dos séculos."
"Não vos deixarei órfãos."
Ele não faria uma promessa que não pudesse cumprir.
Histórias de Chico
Xavier
Magnifico!!! Adelino da Silveira, grande amigo!!!!
ResponderExcluirLinda mensagem., ,gratificante
ResponderExcluirLinda mensagem., ,gratificante
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