O
desaparecimento do corpo de Jesus após sua morte foi objeto de numerosos
comentários; é atestado pelos quatro evangelistas, baseados nos relatos das
mulheres que se apresentaram ao sepulcro no terceiro dia, e que não o acharam.
Uns viram neste desaparecimento um fato milagroso; outros supuseram uma remoção
clandestina.
Segundo
outra opinião, Jesus não teria jamais revestido um corpo carnal, mas somente um
corpo fluídico; durante toda sua vida, não teria sido senão uma aparição
tangível, uma espécie de agênere. Seu nascimento, sua morte e todos os atos
materiais de sua vida não teriam sido mais que uma aparição. E dizem que assim
se explica que seu corpo, retornado ao estado fluídico, pode desaparecer do
sepulcro, e foi com este mesmo corpo que ele se teria mostrado depois de sua
morte.
Sem dúvida,
um fato destes não é radicalmente impossível, segundo o que hoje se sabe sobre
as propriedades dos fluidos; porém seria pelo menos inteiramente excepcional e
em oposição formal com o caráter dos agêneres (Cap. XIV, nº 36). A questão é,
pois, de saber se tal hipótese é admissível, se ela é confirmada ou
contraditada pelos fatos.
A
permanência de Jesus sobre a terra apresenta dois períodos: aquele que precede
e aquele que segue sua morte. No primeiro, desde o momento da concepção até o
nascimento, tudo se passa com sua mãe, como nas condições comuns da vida. (1) A
partir do nascimento e até sua morte, tudo, em seus atos, sua linguagem e nas
diversas circunstâncias de sua vida, apresenta os caracteres inequívocos da sua
corporeidade. Os fenômenos de ordem psíquica que se produzem nele são
acidentais e nada têm de anormal, pois explicam-se pelas propriedades do
perispírito, e são encontrados em diferentes graus em outros indivíduos. Depois
de sua morte, ao contrário, tudo revela nele o ser fluídico. A diferença entre
estes dois estados é tão fundamentalmente traçada, que não é possível
assemelhá-las.
O corpo
carnal tem as propriedades inerentes à matéria propriamente dita, as quais
diferem essencialmente dos fluidos etéreos; a desorganização ali se opera pela
ruptura da coesão molecular. Um instrumento cortante, penetrando no corpo
material, divide seus tecidos; se os órgãos essenciais à vida são atacados, seu
funcionamento se detém, e a morte será a consequência, isto é, a morte do
corpo. Essa coesão não existe nos corpos fluídicos; a vida, neles, não repousa
no funcionamento de órgãos especiais, e neles não se podem produzir desordens
análogas; um instrumento cortante, ou qualquer outro, ali penetra como num
vapor, sem lhe ocasionar lesão alguma. Eis porque os seres fluídicos designados
sob o nome de agêneres não podem ser mortos.
Depois do
suplício de Jesus, seu corpo lá ficou, inerte e sem vida; foi sepultado como os
corpos comuns, e todos puderam vê-lo e tocá-lo. Depois de sua ressurreição,
quando ele quis deixar a Terra, não morre; seu corpo se eleva, se desvanece e
desaparece sem deixar nenhum sinal, prova evidente de que esse corpo era de
outra natureza que não aquele que pereceu sobre a cruz; de onde será forçoso
concluir que se Jesus pôde morrer, é que tinha corpo carnal.
Em
consequência de suas propriedades materiais, o corpo carnal é a sede das
sensações e das dores físicas que repercutem no centro sensitivo ou Espírito.
Não é o corpo que sofre, é o Espírito que recebe o contragolpe das lesões ou
alterações dos tecidos orgânicos. Num corpo privado de Espírito, a sensação é
absolutamente nula; pela mesma razão, o Espírito, que não tem corpo material
não pode experimentar os sofrimentos que são o resultado da alteração da
matéria; daí será preciso igualmente concluir que se Jesus sofreu materialmente
como não será possível duvidar-se, é que tinha um corpo material, de natureza
idêntica à de todos.
Aos fatos
materiais se juntam considerações morais, do mais alto poder.
Se durante
sua vida Jesus tivesse estado nas condições dos seres fluídicos, não teria
experimentado nem a dor, nem nenhuma das necessidades do corpo; supor que ele
assim era, será retirar-lhe todo o mérito da vida de privações e de sofrimentos
que havia escolhido como exemplo de resignação. Se tudo nele era só aparência,
todos os atos de sua vida, o anúncio reiterado de sua morte, a cena dolorosa do
Jardim das Oliveiras, sua oração a Deus para que afastasse o cálice de seus
lábios, sua paixão, sua agonia, tudo, até seu último grito no momento de
entregar o Espírito, não teria sido senão um vão simulacro, para enganar com
relação à sua natureza e fazer crer no sacrifício ilusório de sua vida, uma
comédia indigna de um homem honesto e simples, quanto mais, e por mais forte
razão, de um ser também superior; numa palavra, teria abusado da boa fé dos
seus contemporâneos e da posteridade. Tais são as consequências lógicas desse
sistema, consequências que não são admissíveis, pois resultaria em diminui-lo
moralmente, em lugar de o elevar.
Jesus teve,
pois, um corpo carnal que usou enquanto vivo e um corpo fluídico, que usou após
sua morte o que é confirmado pelos fenômenos materiais e pelos fenômenos
psíquicos que assinalaram sua vida.
A GÊNESE de
ALLAN KARDEC