Já no final
da consulta, Dona Fátima*, já ultrapassando seus 70 anos, me perguntou o que
eram esses “Cuidados Paliativos” descritos na manga do meu jaleco. Embora
tivesse um diagnóstico de câncer, seu caso era bem inicial e ela estava
terminando o tratamento. Mas creio que a dúvida sobre o significado do termo
vinha lhe atormentando há tempos. Expliquei que a função dos paliativistas era
essencialmente proporcionar alívio a pacientes com doenças incuráveis, ou em
situações que comprometam significativamente sua qualidade de vida. Falei
também sobre o conforto que buscamos oferecer a pacientes terminais e suas
famílias.
Dona Fátima
pensou por alguns segundos e, um pouco ressabiada, perguntou:
– Então a
senhora é uma médica do fim da vida?
– Também,
Dona Fátima. Cuido de pessoas com doença curáveis, como a senhora, e também
daquelas que não têm possibilidade de cura. Para essas preciso dar uma atenção
muito especial, para que elas não sofram por causa da doença até o dia em que
sua hora chegar.
Após mais
alguns segundos pensativos, ela concluiu, um tanto impressionada:
– Puxa… a senhora deve ver cada coisa na alma das pessoas…
Na hora eu
apenas sorri, e não pude dar uma resposta melhor à conclusão dela. Mais tarde,
lembrando das suas palavras, pensei nas inúmeras coisas que vemos em nosso
trabalho como “médicos do fim da vida”.
Pensei nas
vezes em que vimos famílias exigindo a manutenção de procedimentos fúteis (e
causadores de grande sofrimento) para manter seus parentes vivos mais alguns
dias para que questões financeiras pudessem ser resolvidas. E no quanto nós,
estupefatos, éramos obrigados a nos confrontar duramente com o lado mais cruel
e obscuro dos seres humanos. O dinheiro pode, sim, corromper até as almas mais
amorosas.
Pensei nas
pessoas que, mesmo em seus últimos dias de vida, mantinham-se arrogantes e
autoritárias, incapazes de estreitar laços com a família ou com quem quer que
fosse. Aprendemos com elas que vamos morrer exatamente do jeito que escolhemos
viver, e que a fragilidade da doença por si só não será capaz de refazer laços
que menosprezamos durante toda a nossa vida.
Lembrei da
dor infinita que vimos nos olhos de pais perdendo seus filhos, e na força
indescritível que eles demonstravam a cada fôlego tomado, a cada noite mal
dormida, a cada má notícia escutada. A sensação quase opressiva que sentíamos
ao assistir à beleza inacreditável do amor daquelas pessoas, e ao nos darmos
conta do quanto é imensa nossa responsabilidade por estar ali ao seu lado,
representando seu apoio, seu guia, sua esperança. Um amor que, em sua forma
mais sublime, era também tão desolador. E que fazia nosso peito doer tanto.
Pensei nas
tantas famílias desesperadas com suas perdas iminentes, muitas delas tão
desesperadas que a pessoa que estava partindo passava a ser coadjuvante.
Lembrei de como o foco parecia ser repentinamente transferido a elas mesmas, e
às perdas que suas próprias vidas sofreriam dali em diante. Ouvimos frases
cruéis, do tipo “Como é que ele pode me deixar no meio da falência da
empresa?”, ou “Como é que eu vou me sustentar agora?”. Vimos ali,
esparramando-se sob nossos pés, um egoísmo velado, mal disfarçado, e que nos
fazia lutar contra nosso próprio sentimento de desprezo por tamanha
superficialidade.
Como
“médicos do fim da vida” vemos, sim, atitudes e sentimentos assustadores. Nós
nos deparamos, necessariamente, com o que há de pior na alma humana.
Presenciamos, numa única manhã, mais sofrimento do que boa parte das pessoas
tem contato durante toda sua vida. Muitas vezes nos sentimos impotentes. Outras
tantas vezes, uma grande decepção com a humanidade toma conta de nós.
Mas, se eu
tivesse que escolher, em minha resposta à Dona Fátima, as coisas que mais
impressionam os “médicos do fim da vida”, certamente não me referiria às
grandes misérias humanas. Simplesmente pelo fato de que, embora elas estejam
presentes em todos os cantos, seu impacto não chega nem mesmo perto das
capacidades quase divinas que presenciamos. E, se eu tivesse que eleger apenas
uma dessas capacidades para descrever a ela, eu provavelmente falaria sobre a
resiliência. Falaria dessa habilidade surpreendente de muitos dos nossos
pacientes em sua fase final de vida, através da qual não é deixado espaço para
queixas e conjecturações inúteis. Os resilientes conseguem compreender aquilo
que lhes é inevitável, e buscam ressignificar suas existências a partir daí.
Agradecem por aquilo que ainda têm, em vez de lamentar o que perderam.
Valorizam aquilo que podem alcançar e vivenciar. Tocam o rosto de seus filhos e
netos, maravilhados com a sensação que isso lhes causa. Choram, emocionados, ao
ouvir uma música que lhes agrada, e têm crises de soluços depois de rirem
convulsivamente de uma piada. Elogiam a maciez do lençol que foi trocado
naquela manhã. Respiram fundo ao sentir o cheiro do café que a enfermeira
trouxe. Chupam uma bala de hortelã como se fosse um banquete. E assim, a cada
pequena atitude, os resilientes vão cultivando uma felicidade genuína em
quaisquer dificuldades que enfrentem, em quaisquer situações que lhes ameacem.
Eu diria à
Dona Fátima que, se eu precisasse escolher apenas uma habilidade das almas
humanas que vi, algo que pudesse me ajudar a terminar meus dias feliz e
realizada, essa habilidade seria a resiliência. E ela, provavelmente, me
responderia de volta:
– É como eu
disse, doutora… vocês veem cada coisa na alma das pessoas…
*nome fictício para preservar a identidade da paciente
Autor
desconhecido