“É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um
rico entrar no Reino dos céus”. Mateus: 19, 16, 24;
Se a riqueza houvesse de constituir obstáculo absoluto à salvação
dos que a possuem, conforme se poderia inferir de certas palavras de Jesus,
interpretadas segundo a letra e não segundo o espírito, Deus, que a concede,
teria posto nas mãos de alguns um instrumento de perdição, sem apelação
nenhuma, idéia que repugna à razão. Sem dúvida, pelos arrastamentos a que dá
causa, pelas tentações que gera e pela fascinação que exerce, a riqueza
constitui uma prova muito arriscada, mais perigosa do que a miséria. É o
supremo excitante do orgulho, do egoísmo e da vida sensual. E o laço mais forte
que prende o homem à Terra e lhe desvia do céu os pensamentos. Produz tal
vertigem que, muitas vezes, aquele que passa da miséria à riqueza esquece de
pronto a sua primeira condição, os que com ele a partilharam, os que o
ajudaram, e faz-se insensível, egoísta e vão. Mas, do fato de a riqueza tornar
difícil a jornada, não se segue que a torne impossível e não possa vir a ser um
meio de salvação para o que dela sabe servir-se, como certos venenos podem
restituir a saúde, se empregados a propósito e com discernimento.
Quando Jesus disse ao moço que o inquiria sobre os meios de ganhar
a vida eterna: "Desfaz-te de todos os teus bens e segue-me", não
pretendeu, decerto, estabelecer como princípio absoluto que cada um deva
despojar-se do que possui e que a salvação só a esse preço se obtém; mas,
apenas mostrar que o apego aos bens terrenos é um obstáculo à salvação. Aquele
moço, com efeito, se julgava quite porque observara certos mandamentos e, no
entanto, recusava-se à idéia de abandonar os bens de que era dono. Seu desejo
de obter a vida eterna não ia até ao extremo de adquiri-la com sacrifício.
O que Jesus lhe propunha era uma prova decisiva, destinada a pôr a
nu o fundo do seu pensamento. Ele podia, sem dúvida, ser um homem perfeitamente
honesto na opinião do mundo, não causar dano a ninguém, não maldizer do
próximo, não ser vão, nem orgulhoso, honrar a seu pai e a sua mãe. Mas, não
tinha a verdadeira caridade; sua virtude não chegava até à abnegação. Isso o
que Jesus quis demonstrar. Fazia uma aplicação do princípio: "Fora da
caridade não há salvação".
A conseqüência dessas palavras, em sua acepção rigorosa, seria a
abolição da riqueza por prejudicial à felicidade futura e como causa de uma
imensidade de males na Terra; seria, ao demais, a condenação do trabalho que a
pode granjear; conseqüência absurda, que reconduziria o homem à vida selvagem e
que, por isso mesmo, estaria em contradição com a lei do progresso, que é lei
de Deus.
Se a riqueza é causa de muitos males, se exacerba tanto as más
paixões, se provoca mesmo tantos crimes, não é a ela que devemos inculpar, mas
ao homem, que dela abusa, como de todos os dons de Deus. Pelo abuso, ele torna
pernicioso o que lhe poderia ser de maior utilidade. E a conseqüência do estado
de inferioridade do mundo terrestre. Se a riqueza somente males houvesse de
produzir, Deus não a teria posto na Terra. Compete ao homem fazê-la produzir o
bem. Se não é um elemento direto de progresso moral, é, sem contestação,
poderoso elemento de progresso intelectual.
A desigualdade das riquezas é um dos problemas que inutilmente se
procurará resolver, desde que se considere apenas a vida atual. A primeira
questão que se apresenta é esta: Por que não são igualmente ricos todos os
homens? Não o são por uma razão muito simples: por não serem igualmente
inteligentes, ativos e laboriosos para adquirir, nem sóbrios e previdentes para
conservar. E, alias, ponto matematicamente demonstrado que a riqueza, repartida
com igualdade, a cada um daria uma parcela mínima e insuficiente; que, supondo
efetuada essa repartição, o equilíbrio em pouco tempo estaria desfeito, pela
diversidade dos caracteres e das aptidões; que, supondo-a possível e durável,
tendo cada um somente com que viver, o resultado seria o aniquilamento de todos
os grandes trabalhos que concorrem para o progresso e para o bem-estar da
Humanidade; que, admitido desse ela a cada um o necessário, já não haveria o
aguilhão que impele os homens às grandes descobertas e aos empreendimentos
úteis. Se Deus a concentra em certos pontos, é para que daí se expanda em
quantidade suficiente, de acordo com as necessidades.
Admitido isso, pergunta-se por que Deus a concede a pessoas
incapazes de fazê-la frutificar para o bem de todos. Ainda aí está uma prova da
sabedoria e da bondade de Deus. Dando-lhe o livre-arbítrio, quis ele que o
homem chegasse, por experiência própria, a distinguir o bem do mal e que a
prática do primeiro resultasse de seus esforços e da sua vontade. Não deve o
homem ser conduzido fatalmente ao bem, nem ao mal, sem o que não mais fora senão
instrumento passivo e irresponsável como os animais. A riqueza é um meio de o
experimentar moralmente. Mas, como, ao mesmo tempo, é poderoso meio de ação
para o progresso, não quer Deus que ela permaneça longo tempo improdutiva, pelo
que incessantemente a desloca. Cada um tem de possuí-la, para se exercitar em
utilizá-la e demonstrar que uso sabe fazer dela. Sendo, no entanto,
materialmente impossível que todos a possuam ao mesmo tempo, e acontecendo,
além disso, que, se todos a possuíssem, ninguém trabalharia, com o que o
melhoramento do planeta ficaria comprometido, cada um a possui por sua vez.
Assim, um que não na tem hoje, já a teve ou terá noutra existência; outro, que
agora a tem, talvez não na tenha amanhã. Há ricos e pobres, porque sendo Deus justo,
como é, a cada um prescreve trabalhar a seu turno. A pobreza é, para os que a
sofrem, a prova da paciência e da resignação; a riqueza é, para os outros, a
prova da caridade e da abnegação.
Fonte: "O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO." ALLAN
KARDEC"
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