A palavra demônio não implica a ideia de Espírito mau, a não
ser na sua acepção moderna, porque o termo grego dáimon. de que ela deriva,
significa gênio, inteligência, e se aplicou aos seres incorpóreos, bons ou
maus. sem distinção.
Os demônios, segundo
a significação vulgar do termo, seriam entidades essencialmente malfazejas: e
seriam, como todas as coisas, criação de Deus. Mas Deus, que é eternamente
justo e bom, não pode ter criado seres predispostos ao mal por sua própria
natureza, e condenados pela eternidade. Se não fossem obra de Deus, seriam
eternos como ele, e nesse caso haveria muitas potências soberanas.
A primeira condição
de toda doutrina é a de ser lógica; ora, a dos demônios, no seu sentido
absoluto, falha neste ponto essencial. Que, na crença dos povos atrasados, que
não conheciam os atributos de Deus, admitindo divindades malfazejas, também se
admitissem os demônios, é concebível; mas para quem quer que faca da bondade de
Deus um atributo por excelência, é ilógico e contraditório supor que ele tenha
criado seres voltados ao mal e destinados a praticá-lo perpetuamente, porque
isso seria negar a sua bondade. Os partidários do demônio se apóiam nas
palavras do Cristo e não seremos nós que iremos contestar a autoridade dos seus
ensinos, que desejaríamos ver mais no coração do que na boca dos homens; mas
estariam bem certos do sentido que ele atribuía à palavra demônio? Não se sabe
que a forma alegórica é uma das características da sua linguagem? Tudo o que o
Evangelho contém deve ser tomado ao pé da letra? Não queremos outra prova, além
desta passagem;
“Logo após esses dias
de aflição, o sol se obscurecerá e a lua não dará mais a sua luz, as estrelas
cairão do céu e as potências celestes serão abaladas. Em verdade vos digo que
esta geração não passará, antes que todas essas coisas se cumpram.” Não vimos a
forma do texto bíblico contraditada pela Ciência no que se refere à criação e
ao movimento da Terra? Não pode acontecer o mesmo com certas figuras empregadas
pelo Cristo, que devia falar de acordo com o tempo e a região em que se achava?
O Cristo não poderia ter dito conscientemente uma falsidade. Se, portanto,
nessas palavras há coisas que parecem chocar a razão, é que não as
compreendemos ou que as interpretamos mal.
Os homens fizeram com
os demônios o mesmo que com os anjos. Da mesma maneira que acreditam na
existência de seres perfeitos desde toda a eternidade, tomaram também os
Espíritos inferiores por seres perpetuamente maus. A palavra demônio deve,
portanto, ser entendida como referente aos Espíritos impuros, que
freqüentemente não são melhores que os designados por esse nome, mas com a
diferença de ser o seu estado apenas transitório. São esses os Espíritos
imperfeitos que protestam contra as suas provações e por isso as sofrem por
mais tempo, mas chegarão por sua vez á perfeição, quando se dispuserem a tanto.
Poderíamos aceitar a palavra demônio com esta restrição. Mas, como ela é agora
entendida num sentido exclusivo, poderia induzir em erro, dando margem á crença
na existência de seres criados especialmente para o mal.
A propósito de Satanás, é evidente que se trata da
personificação do mal sob uma forma alegórica, porque não se poderia admitir um
ser maligno lutando de igual para igual com a Divindade, e cuja única
preocupação seria a de contrariar os seus desígnios. Como o homem necessita de
imagens e figuras para impressionar a sua imaginação, pintou os seres
incorpóreos com formas materiais dotadas de atributos que lembram as suas
qualidades ou os seus defeitos Foi assim que os antigos, querendo personificar
o Tempo, deram-lhe a figura de um velho com uma foice e uma ampulheta. Uma
figura de jovem, nesse caso, seria um contra-senso. O mesmo se deu com as
alegorias da Fortuna, da Verdade etc. Os modernos representaram os anjos, os
Espíritos puros, numa figura radiosa, com asas brancas, símbolo da pureza, e
Satanás, com chifres, garras e os atributos da bestialidade, símbolos das
paixões. O vulgo, que toma as coisas ao pé da letra, viu nesses símbolos
entidades reais, como outrora tinha visto Saturno na alegoria do Tempo.
Fonte: O Livro dos Espíritos. Allan Kardec
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