Lia e Marcela eram enfermeiras e amigas de longa data.
Trabalhavam juntas em uma unidade de pronto atendimento, como parte da equipe
que integrava as ambulâncias. Muito próximas, ajudavam uma à outra não só
quando havia a necessidade de troca de seus plantões, como também em questões
pessoais. Quando a filha de Lia nasceu, além da avó, o maior apoio foi o da
“tia” Marcela.
Certa ocasião, Lia soube que não poderia cumprir o plantão
da semana seguinte porque teria que resolver um compromisso particular. Como de
costume, recorreu a sua amiga Marcela, que prontamente procurou a administração
para informar que estaria no lugar da colega.
Na quarta-feira, antes de Marcela ir para a unidade, Lia
ligou para amiga para contar o quanto estava feliz. A filha tinha obtido boas
notas na escola, o esposo estava tendo bons resultados no novo emprego e ela
tinha conseguido pegar seu carro novo naquele mesmo dia. Com o tradicional
afeto, encerrou a ligação, reforçando todo o agradecimento que tinha pelo
constante apoio daquela irmã de coração.
Marcela chegou ao trabalho às dezoito horas, levando a
alegria daquela conversa fraternal para com seus colegas e pacientes. Assim,
mesmo com toda a movimentação do plantão, nem sentiu as horas passarem. Estava
muito motivada naquele dia.
Por volta de dez da noite, no entanto, sentiu um breve
calafrio ao receber um chamado para embarcar em uma das ambulâncias. Não
entendeu o motivo daquela sensação, mas prosseguiu em direção ao local onde
fora informado que uma jovem havia se acidentado com o carro.
Ao chegar ao local, não foi difícil perceber que a
ocorrência tratava-se de uma tentativa de assalto seguida de morte. Não haveria
muito que fazer. Mas os profissionais de saúde se aproximaram do carro para verificar
os sinais vitais da moça.
Ao chegar mais perto, o chão sumiu aos pés da enfermeira.
Era Lia, sua amiga. Marcela deu alguns passos para trás e quis negar a visão do
ocorrido. Sua atitude profissional deu lugar a um extravasamento emocional
inesperado. Não se conteve e teve que ser amparada pelos colegas. Como poderia
imaginar que aquela troca de plantão resultaria naquilo? Dali por diante,
remorso e lágrimas tomaram conta de Marcela.
Meses se passaram junto à dor e à sensação de ter sido
culpada pela morte da amiga: “se eu não tivesse trocado o plantão, isto não
teria acontecido”. A casa de Marcela envolveu-se em pura tristeza. Tudo para
ela tinha dado lugar a uma sensação dolorosa de culpa.
Mas um dia, tentando mudar aquele cenário, o seu filho
pré-adolescente, ao chegar da escola, abraça a mãe no sofá e diz com lágrimas
nos olhos:
– “Mãe, volta a ser feliz com a gente. Ela não morreu por
sua culpa.”.
Marcela se surpreende com a frase inesperada do filho.
Diante daquelas lágrimas profundas, começou a rever o sentido de sua vida
esboçando-lhe um doce sorriso.
Quantos casos reais, similares a este, já não foram contados
em nossas vidas. É o tripulante da aeronave que embarca no lugar do colega e
desencarna em um acidente aéreo; o carro que se empresta ao filho que, em
seguida, falece em uma colisão; dentre tantos outros exemplos.
Em diversas situações como estas, aqueles que foram,
indiretamente, partícipes do ocorrido, ao trocarem suas posições ou cederem
seus bens materiais nos diversos cenários, costumam trazer para si uma imensa
culpa, como se fossem responsáveis pelo desencarne do próximo. Alguns levam por
anos este sentimento, atrapalhando, até mesmo, sua vida pessoal e profissional.
Neste contexto, a Doutrina Espírita nos traz o consolo de
que todos nós, antes de encarnarmos, já temos uma programação realizada para a
nossa vida. De uma maneira geral, escolhemos antes do berço as expiações e
provas pelas quais passaremos. Logo, já temos uma programação a cumprir, como
se fosse uma “espécie de destino” [1].
Isto não inibe, todavia, o nosso livre-arbítrio. No decorrer
da caminhada podemos mudar nossos rumos, acelerando o nosso progresso ou
atrasando a nossa evolução. Tudo depende de nossos propósitos junto ao bem, à
neutralidade ou ao mal.
Aqueles que caminham conosco estão unidos por laços de
outras encarnações, pautadas na afinidade ou débitos contraídos [2]. E não,
necessariamente, são responsáveis pelos fatos que ocorrem em nossas vidas.
Desencarnações como a desta história de Lia podem fazer
parte de um planejamento anterior, ou ainda do livre arbítrio delituoso de
terceiros. Mas a culpa não se incide na troca realizada pela amiga. De uma
forma ou de outra, “o instinto do destino” de Lia a levaria até o local onde os
fatos poderiam ocorrer. Este “instinto”, em outras palavras, pode ser entendido
pela impressão em foro íntimo que o espírito guarda das fases pelas quais
passará em sua vida. Chegado o momento, esta impressão pode, muita das vezes,
ser despertada, trazendo-nos aquela sensação que denominamos de pressentimento
[1].
Não somos necessariamente culpados pelo desencarne de
terceiros. Isto dependerá das circunstâncias. Mas somos responsáveis por
amá-los em qualquer tempo. O amor espontâneo, sem exigências, sempre nos trará
a sensação de conforto por tê-los amado enquanto estavam conosco. Logo, amemos
quem está ao nosso lado e quem também já deixou as vestes físicas. E nunca
deixemos de amar a nós mesmos, confiantes nos desígnios da Divina Providência.
Márcio Martins da Silva Costa
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