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sexta-feira, 24 de novembro de 2017

“UM FORRÓ NO UMBRAL”

Anastácio estava relativamente tranquilo. Entendia ser um bom espírita e, por isso, não temia a morte que se avizinhava. Sentia, ao contrário, certa satisfação antecipada pela belíssima recepção que, certamente, teria no plano espiritual. Sua larga ficha de atividades ao longo de 35 anos por certo o credenciava ao título de vitorioso ou, pelo menos, semi-vitorioso, condição que poucos conseguiam alcançar.
Suave torpor invadiu seu pensamento e o corpo rígido não obedecia mais às ordem mentais.
Sentiu forte explosão ou implosão na cabeça e viu-se livre do corpo carnal. Tentou erguer-se, mas algo irresistível o arrastava, não sabia para onde. Percebia, porém, que ia em sentido descendente.
Preocupado, observou que o ambiente estava ficando escuro e tenebroso. Assustou-se.
O que estava acontecendo?
Quis orar, mas o medo não lhe permitia juntar as ideias.
Sempre arrastado por aquelas forças desconhecidas, chegou finalmente a um vale fracamente iluminado por uma fogueira de grandes proporções. As labaredas dançavam seus reflexos avermelhados através do ambiente fumarento, como se acompanhassem o ritmo de uma sanfona desafinada e estridente que tocava furiosamente, sem parar. Ao aproximar-se mais observou, horrorizado. Que em torno da fogueira terrível e alucinante forró movimentava homens e mulheres de todos os tipos e idades.
Seu senso religioso e estético revoltou-se ao observar as expressões de alguns dançarinos, o suor escorrendo pelos corpos seminus, enquanto cenas de profunda degradação moral faziam o velho espírita estremecer até as entranhas.
Os dançarinos, aos pares ou isoladamente, já rodopiavam em torno dele. Anastácio, vendo-se em meio àquele torvelinho infernal, tentava inutilmente desvencilhar-se, para sair dali.
Começou a revoltar-se. Então era assim? Uma vida inteira votada ao Espiritismo findava num horrível e asqueroso forró, nas regiões umbralinas do planeta?
- O que significa isto? Gritou. – Alguém tem que me explicar!!!
Mas ninguém dava atenção a seus gritos que se perdiam nos sons da sanfona e no ruído dos pés arrastando-se no chão. Furioso, agarrou o primeiro que lhe passou ao alcance da mão e o segurou com força.
- Você vai ter que me dizer porque estou aqui!!!
O interpelado virou o rosto para ele e Anastácio reconheceu seu velho conhecido, Gerônimo, que também fora espírita na Terra.
- O que está acontecendo? Estarei louco? – perguntou, no auge da aflição.
- Não, Anastácio. Você não está louco... nem eu. Nós apenas nos enganamos, na Terra...
- Como?... Então o espiritismo é mentira? Tudo aquilo que aprendemos é mentira?
- Não, meu amigo – respondeu Gerônimo, arrastando o ex-companheiro pelo braço, acompanhando o turbilhão do forró. – A mentira estava em nós mesmos.
- Isto é um absurdo, uma injustiça! – Gritou Anastácio, tentando elevar a voz acima da barulheira. – Você na verdade merece estar aqui, porque nunca foi um espírita decente. Além de irresponsável, sempre foi devasso. Chegou ao cúmulo de seduzir uma jovem da Mocidade e acabou levando-a ao aborto. Todos nós sabíamos disso...
- E não me disseram nada!
O tom de mágoa engasgava a voz na garganta de Gerônimo enquanto lágrimas lhe assomavam aos olhos, ao prosseguir:
- Vocês são quase tão culpados quanto eu. Vocês, que se davam ares de grandes espíritas, praticantes do Evangelho. Para tudo tinham resposta na ponta da língua, como se fossem os porta-vozes do plano superior. Você, então, que era o mais procurado pelas pessoas que buscavam orientação, por que nunca me repreendeu?
Anastácio arregalou os olhos e abriu a boca para responder, mas... Responder o quê?
Gerônimo conseguiu arrastá-lo para fora do espaço onde os dançarinos continuavam seus rodopios, sem conseguirem parar, apesar do suor e do cansaço. Afastaram-se um pouco não muito, porque cercando a clareira percebiam-se sombras monstruosas a se moverem com ar ameaçador. Gerônimo continuou esforçando-se para não demonstrar toda a intensidade da mágoa e dor que sentia:
- Eu sabia que aquilo estava errado, mas a tentação foi grande demais. A garota me deu bola e... Foi uma paixão furiosa... Depois, a gravidez, o medo da mulher descobrir, o escândalo. Eu sabia que vocês tinham conhecimento de tudo, mas como ninguém me aconselhou, como nada disseram... Achei que estavam aceitando tudo com naturalidade e eu também acabei acreditando que não estava tão errado assim.
Anastácio baixou a cabeça. Nunca havia refletido sob esse enfoque. Algo começava a sussurrar-lhe nas profundezas da alma dizendo que numa comunidade espírita as culpas de um atingem também aqueles que nada fazem para ajuda-lo a se corrigir.
Gerônimo foi de novo sugado para o meio dos dançarinos e Anastácio ainda pôde ver-lhe o semblante molhado de lágrimas e marcado por profundo sofrimento.
Sentiu que precisava refletir, repensar algumas posturas, pôr as idéias em ordem. Aquelas considerações eram algo novo que lhe estava abalando o ser.
Um homem aproximou-se, dizendo:
- Seja bem vindo, Anastácio.
Olhou-lhe rosto e reconheceu Manoel, velho companheiro de lides espíritas. Ia estender-lhe a mão, mas observou, horrorizado, que seus braços terminavam em dois tocos sanguinolentos, de horrível aparência.
- Espero que não permaneça muito tempo por aqui – disse Manoel, envergonhado, procurando esconder os braços atrás das costas. Depois, num suspiro, continuou:
- Eu bem que mereço estar aqui... e nem sei quando vou sair. Talvez até me mandem  para mais baixo. Aqui, é uma espécie de saguão do Umbral. Os que ficam, é porque algo sustentou sua queda. No meu caso, foram as preces de pessoas que curei.
- Quanto a você – respondeu Anastácio, em tom altivo – é fácil entender que esteja aqui. Você era médium espírita e, quando soubemos, estava cobrando pelas curas que realizava.
E olhando-o com ar de reprovação, concluiu:
- Você ganhou verdadeira fortuna com o uso da mediunidade.
Manoel baixou os olhos, na esperança de que Anastácio não lhe visse as lágrimas nascentes. Com humildade na voz mas demonstrando mágoas contidas, murmurou:
- É verdade... E você mão me disseram nada. Principalmente você, tão zeloso pela pureza doutrinária. Eu era pobre, precisava manter a família. Aí, comecei a receber presentes e quando me dei conta, tinha ido longe demais.
Manoel ergueu a cabeça e seu rosto expressava grande sofrimento e revolta, ao reclamar em tom de acusação:
Por que você não me disse nada? Eu achava que se estivesse tão errado assim, os companheiros me chamariam a atenção. Como ninguém me censurou... fui caindo mais e mais...
Sentindo-se arrastado para o turbilhão alucinante, ainda teve tempo de gritar, com lágrimas na voz:
- Por que você não me repreendeu? Se tivesse brigado comigo, me desmoralizado, agredido... teria sido diferente.
Baixando a cabeça, Anastácio chorou amargamente. Aos poucos foi se acalmando. Precisava afastar-se dali, daquele forró diabólico, para mergulhar em reflexões que jamais lhe haviam passado pela cabeça, mas tinha medo das sombras e dos vultos ameaçadores que rondavam o local. Tropeçou e caiu sobre uma coisa mole que pulsava. Eram batimentos cardíacos desordenados. Horrorizado, viu que se tratava de um abortado, um espírito que não conseguia desligar a mente da curetagem que sofrera e por isso permanecia assim, na forma de tecidos retalhados, em cuja intimidade sua vida psíquica pulsava em vibrações de dor e revolta.
- Essa, não! – exclamou comovido e ao mesmo tempo irado com o destino, - Desse aí, tenho certeza de não carregar nenhuma culpa. Nunca promovi nem permiti abortos.
Aquele punhado de tecidos movimentou-se, então, e de suas entranhas saiu uma voz lamentosa que disse:
- Eu fui levado a um centro espírita e fiquei esperando minha vez de ser atendido. Tinha certeza de que receberia alívio e poderia me recompor. Esperei pacientemente, enquanto você doutrinava um espírito que havia sido assassinado. Parece que era alguém muito importante e você passou a maior parte da sessão conversando com ele fazendo perguntas e mais perguntas. Quando finalmente chegou a minha vez, era hora de encerrar e você não me deixou incorporar. Eu me desesperei, então, e me agarrei à médium, mas você disse que devido ao avançado da hora ninguém mais poderia “receber” nenhum espírito. Eu fiquei tão revoltado, com tanto ódio de você, que fui arrastado para este lugar.
- Ah, lembro-me do caso – exclamou Anastácio. – Mas, não tive culpa. Se os dirigentes não cuidam da disciplina, a sessão vira bagunça.
- Eu não queria bagunçar nada – gemeu o pobre espírito. – Queria apenas alívio para o meu sofrimento, que era grande demais...
Anastácio começava a sentir-se na condição de réu.
Que situação! Quando pensava que seria recebido em regiões espirituais, mas elevadas, quem sabe até por algum dos Ministros de Nosso Lar que viria parabenizá-lo por sua dedicação ao Espiritismo ao longo de tantos anos... Em vez disso, ali estava, naquele horrível lugar e, o pior, sentindo-se culpado.
Olhou para aquele ser pulsante, perguntando a si mesmo: “O que será mais importante, a disciplina em nome da caridade, ou a caridade em nome do amor?”
Levantou-se decidido a afrontar a escuridão e os vultos rondantes, desde que conseguisse sair dali, daquele forró infernal que começava a atraí-lo com força hipnótica. Segurou em algo para não ser arrastado. Era o cabelo de uma mulher que gritou de dor.
Aquela voz...
Olhou-lhe o rosto e reconheceu Marieta que fora uma das melhores palestrantes do Centro.
- Você aqui, Anastácio? – perguntou, concluindo: - Não esperava que viesse para cá.
Já mais cauteloso. Anastácio balbuciou:
- É... nem eu esperava. Quanto a você, todos nós sabíamos como era ambiciosa e cruel. Pregava a bondade, mas explorava seus empregados, não dispensando qualquer falta.
Marieta, sentindo-se arrastada pelo turbilhão, agarrou-se a Anastácio, gritando:
- E você alguma vez me chamou às falas? Alguma vez procurou mostrar-me que estava errada?
Ah, isso já era demais. Então ele tinha culpa até pelos desmandos de alguém que conhecia a Doutrina melhor que qualquer outro e se dedicava a fazer belas palestras sobre as virtudes evangélicas? Mas antes que pudesse dizer qualquer coisa, a mulher concluiu:
- Se você ou qualquer outro dos companheiros tivesse me repreendido, abrindo-me os olhos para a minha própria conduta, com certeza eu teria repensado minhas posturas. Mas todos sempre ficaram calados, me aplaudindo e parabenizando pelas palestras que fazia...
- Deus do céu! Exclamou Anastácio para si mesmo. Será que ela tem razão?
Pensou um pouco e perguntou, quase num murmúrio:
- Mas a caridade, a tolerância... onde ficam?
Marieta, com voz embargada por um soluço, perguntou:
- Acha que é caridoso ver alguém se afundando nos próprios erros e não ajudar... nem que seja com uma chicotada?
Ia dizer mais alguma coisa, mas o turbilhão hipnótico arrastou-a, deixando Anastácio boquiaberto, sem saber o que pensar. Começou a correr, tentando fugir daquele local, mas escorregou e caiu no pátio de um grande hospital. Ali, tudo era limpo e o silêncio contrastava com o ambiente barulhento de onde viera. Um enfermeiro aproximou-se e convidou-o a acompanhá-lo. Entraram num pavilhão onde algumas centenas de enfermos olhavam para ele com ar de súplica, como se ele, Anastácio, pudesse ajudá-los. Antes que tivesse tempo de externar seu pensamento, o enfermeiro disse:
- Não estranhes Anastácio. Estes doentes são apenas parte daqueles que deixaram de ser atendidos, por sua culpa...
- Por minha culpa? Agora, tudo é culpa minha? – explodiu Anastácio, no auge dos conflitos que lhe desarmonizavam o íntimo.
Sentia-se revoltado, não querendo aceitar os novos enfoques que o vinham afrontando desde que desencarnara.
Indignado, por considerar-se injustiçado, continuou:
- Creio que está havendo algum terrível engano. Eu sempre procurei ser um bom espírita. Bem... quero dizer, eu dediquei a minha vida inteira ao Espiritismo e, principalmente, à doutrinação de espíritos sofredores.
- É verdade – respondeu o enfermeiro. – Mas a sua tarefa sofreu muitos prejuízos por causa da sua vaidade e orgulho.
Ia responder à altura, insultado como se sentia, diante daquela acusação. Ele, que sempre pregara a praticara a humildade.
Mas qualquer coisa movia-se desagradavelmente em sua consciência e preferiu ouvir calado.
-?!!!
- Sim, Anastácio. Sou eu o enfermeiro que conduz os espíritos doentes ao socorro mediúnico no centro onde você trabalhava. Os doentes deste pavilhão deveriam ter sido socorridos no grupo que se desfez, em razão de sua vaidade.
- Mas, eu não sou vaidoso – murmurou.
- É sim, meu caro. Você foi sempre considerado o melhor doutrinador da casa e essa idéia lhe subiu à cabeça. No início, quando entrava na sala das reuniões suas vibrações eram de amor e desejo de ajudar. Mas aos poucos começou a se inebriar com a admiração que sua doutrinação provocava em algumas pessoas, e em si mesmo. Desde então, quando entrava na sala, já era pensando em como falaria em tais e quais situações. Seu pensamento, em vez de buscar o Alto, ficava girando em torno dos temas brilhantes da doutrinação e, como você era o principal responsável pelo grupo, este começou a decair... até a extinção.
Anastácio arregalou os olhos diante do que começava a entender. Há poucas horas apenas, achava-se credor de excelentes serviços prestados ao plano espiritual.... e agora...
O enfermeiro, no entanto, não deixou que concluísse o pensamento, convidando:
- Sente-se ali, naquele banco, para repousar um pouco, porque depois vou levá-lo até outro pavilhão. Lá você vai encontrar o arquivo onde está o dossiê de suas últimas  existências na Terra. Vai conhecer o montante das faltas que cometeu em algumas das suas reencarnações e entender que durante todos esses anos de dedicação ao Espiritismo, você não lhe fez qualquer favor. Bem ao contrario, o favorecido foi você mesmo pela possibilidade de resgatar parte das suas culpas, através de um trabalho de amor em benefício do próximo. Além disso, foi a sua grande oportunidade de crescer em valores positivos.
Anastácio estava aturdido. Já lera vários depoimentos de espíritos e deparavam receber louros no mundo espiritual e deparavam com realidades amargas, mas jamais imaginara que ele próprio passaria por tal situação. Acreditava sinceramente ser merecedor de créditos especiais, e lhe informavam que sua conta estava em vermelho. Sentiu como se algo rasgasse suas entranhas, despedaçasse suas emoções, e pusesse em perigo seu equilíbrio mental. Sentou-se no banco que ficava sob uma frondosa árvore e entrou em meditação. Reviu seus atos bons e maus e penetrou até o âmago de suas intenções, descobrindo que raramente elas foram realmente puras; havia muita hipocrisia, até mesmo dele para com ele próprio.
Oh, arrependimento profundo e machucante! Ah, se pudesse voltar à vida, seria outro homem, um homem novo, aquele da reforma interior que tanto pregara e só agora entendia que não havia aplicado em si mesmo.
Lembrou-se dos casos de morte clínica, em que o morto voltava à vida. Quem sabe, ele pudesse retornar...
Atirou-se de joelhos, baixou a fronte com humildade, desta vez muito sincera, e começou a orar: “ Meu Deus, tem piedade de mim, tem piedade de mim...”
Não conseguia dizer outra coisa. Qualquer promessa lhe cheirava a hipocrisia. O rosto molhado de pranto, a alma angustiada, sentia quanto era pequeno e digno de piedade, daquela mesma piedade que antigamente lhe despertavam os espíritos maus e rebeldes, quando se mostravam arrependidos...
Alguém segurou seu braço e sacudiu-o com força dizendo:
- Anastácio! Acorda, Anastácio... Para com isso. Você está chorando... deve ter sido algum pesadelo terrível...
Anastácio abriu os olhos. Custou a entender que estivera sonhando; que tudo aquilo fora um pesadelo, um sonho mau...
Sonho mau?
- Não, não foi um pesadelo – respondeu Anastácio, amparado pelo o enfermeiro a lhe intuir. – Foi o sonho mais lindo que já tive... o mais importante de toda a minha vida de encarnado.
“Fim”

Saara Nousiainem

Um comentário:

𝗖𝗢𝗠𝗢 𝗢𝗦 𝗥𝗘𝗟𝗔𝗖𝗜𝗢𝗡𝗔𝗠𝗘𝗡𝗧𝗢𝗦 𝗙𝗜𝗖𝗔𝗠 𝗔𝗧𝗥𝗘𝗟𝗔𝗗𝗢𝗦 𝗡𝗔𝗦 𝗥𝗘𝗘𝗡𝗖𝗔𝗥𝗡𝗔𝗖̧𝗢̃𝗘𝗦.

Os ajustes dos relacionamentos problemáticos de outras existências. Pelas reencarnações os espíritos têm a oportunidade de reestabelecer os ...