Anastácio estava relativamente tranquilo.
Entendia ser um bom espírita e, por isso, não temia a morte que se avizinhava.
Sentia, ao contrário, certa satisfação antecipada pela belíssima recepção que,
certamente, teria no plano espiritual. Sua larga ficha de atividades ao longo
de 35 anos por certo o credenciava ao título de vitorioso ou, pelo menos,
semi-vitorioso, condição que poucos conseguiam alcançar.
Suave torpor invadiu seu pensamento e
o corpo rígido não obedecia mais às ordem mentais.
Sentiu forte explosão ou implosão na
cabeça e viu-se livre do corpo carnal. Tentou erguer-se, mas algo irresistível
o arrastava, não sabia para onde. Percebia, porém, que ia em sentido
descendente.
Preocupado, observou que o ambiente
estava ficando escuro e tenebroso. Assustou-se.
O que estava acontecendo?
Quis orar, mas o medo não lhe
permitia juntar as ideias.
Sempre arrastado por aquelas forças
desconhecidas, chegou finalmente a um vale fracamente iluminado por uma
fogueira de grandes proporções. As labaredas dançavam seus reflexos
avermelhados através do ambiente fumarento, como se acompanhassem o ritmo de
uma sanfona desafinada e estridente que tocava furiosamente, sem parar. Ao
aproximar-se mais observou, horrorizado. Que em torno da fogueira terrível e
alucinante forró movimentava homens e mulheres de todos os tipos e idades.
Seu senso religioso e estético
revoltou-se ao observar as expressões de alguns dançarinos, o suor escorrendo
pelos corpos seminus, enquanto cenas de profunda degradação moral faziam o
velho espírita estremecer até as entranhas.
Os dançarinos, aos pares ou
isoladamente, já rodopiavam em torno dele. Anastácio, vendo-se em meio àquele
torvelinho infernal, tentava inutilmente desvencilhar-se, para sair dali.
Começou a revoltar-se. Então era
assim? Uma vida inteira votada ao Espiritismo findava num horrível e asqueroso
forró, nas regiões umbralinas do planeta?
- O que significa isto? Gritou. –
Alguém tem que me explicar!!!
Mas ninguém dava atenção a seus
gritos que se perdiam nos sons da sanfona e no ruído dos pés arrastando-se no
chão. Furioso, agarrou o primeiro que lhe passou ao alcance da mão e o segurou
com força.
- Você vai ter que me dizer porque
estou aqui!!!
O interpelado virou o rosto para ele
e Anastácio reconheceu seu velho conhecido, Gerônimo, que também fora espírita
na Terra.
- O que está acontecendo? Estarei
louco? – perguntou, no auge da aflição.
- Não, Anastácio. Você não está
louco... nem eu. Nós apenas nos enganamos, na Terra...
- Como?... Então o espiritismo é
mentira? Tudo aquilo que aprendemos é mentira?
- Não, meu amigo – respondeu Gerônimo,
arrastando o ex-companheiro pelo braço, acompanhando o turbilhão do forró. – A
mentira estava em nós mesmos.
- Isto é um absurdo, uma injustiça! –
Gritou Anastácio, tentando elevar a voz acima da barulheira. – Você na verdade
merece estar aqui, porque nunca foi um espírita decente. Além de irresponsável,
sempre foi devasso. Chegou ao cúmulo de seduzir uma jovem da Mocidade e acabou
levando-a ao aborto. Todos nós sabíamos disso...
- E não me disseram nada!
O tom de mágoa engasgava a voz na
garganta de Gerônimo enquanto lágrimas lhe assomavam aos olhos, ao prosseguir:
- Vocês são quase tão culpados quanto
eu. Vocês, que se davam ares de grandes espíritas, praticantes do Evangelho.
Para tudo tinham resposta na ponta da língua, como se fossem os porta-vozes do
plano superior. Você, então, que era o mais procurado pelas pessoas que
buscavam orientação, por que nunca me repreendeu?
Anastácio arregalou os olhos e abriu
a boca para responder, mas... Responder o quê?
Gerônimo conseguiu arrastá-lo para
fora do espaço onde os dançarinos continuavam seus rodopios, sem conseguirem
parar, apesar do suor e do cansaço. Afastaram-se um pouco não muito, porque
cercando a clareira percebiam-se sombras monstruosas a se moverem com ar
ameaçador. Gerônimo continuou esforçando-se para não demonstrar toda a
intensidade da mágoa e dor que sentia:
- Eu sabia que aquilo estava errado,
mas a tentação foi grande demais. A garota me deu bola e... Foi uma paixão
furiosa... Depois, a gravidez, o medo da mulher descobrir, o escândalo. Eu
sabia que vocês tinham conhecimento de tudo, mas como ninguém me aconselhou,
como nada disseram... Achei que estavam aceitando tudo com naturalidade e eu
também acabei acreditando que não estava tão errado assim.
Anastácio baixou a cabeça. Nunca
havia refletido sob esse enfoque. Algo começava a sussurrar-lhe nas profundezas
da alma dizendo que numa comunidade espírita as culpas de um atingem também
aqueles que nada fazem para ajuda-lo a se corrigir.
Gerônimo foi de novo sugado para o
meio dos dançarinos e Anastácio ainda pôde ver-lhe o semblante molhado de
lágrimas e marcado por profundo sofrimento.
Sentiu que precisava refletir,
repensar algumas posturas, pôr as idéias em ordem. Aquelas considerações eram
algo novo que lhe estava abalando o ser.
Um homem aproximou-se, dizendo:
- Seja bem vindo, Anastácio.
Olhou-lhe rosto e reconheceu Manoel,
velho companheiro de lides espíritas. Ia estender-lhe a mão, mas observou,
horrorizado, que seus braços terminavam em dois tocos sanguinolentos, de
horrível aparência.
- Espero que não permaneça muito
tempo por aqui – disse Manoel, envergonhado, procurando esconder os braços
atrás das costas. Depois, num suspiro, continuou:
- Eu bem que mereço estar aqui... e
nem sei quando vou sair. Talvez até me mandem
para mais baixo. Aqui, é uma espécie de saguão do Umbral. Os que ficam,
é porque algo sustentou sua queda. No meu caso, foram as preces de pessoas que
curei.
- Quanto a você – respondeu Anastácio,
em tom altivo – é fácil entender que esteja aqui. Você era médium espírita e,
quando soubemos, estava cobrando pelas curas que realizava.
E olhando-o com ar de reprovação,
concluiu:
- Você ganhou verdadeira fortuna com
o uso da mediunidade.
Manoel baixou os olhos, na esperança
de que Anastácio não lhe visse as lágrimas nascentes. Com humildade na voz mas
demonstrando mágoas contidas, murmurou:
- É verdade... E você mão me disseram
nada. Principalmente você, tão zeloso pela pureza doutrinária. Eu era pobre,
precisava manter a família. Aí, comecei a receber presentes e quando me dei
conta, tinha ido longe demais.
Manoel ergueu a cabeça e seu rosto
expressava grande sofrimento e revolta, ao reclamar em tom de acusação:
Por que você não me disse nada? Eu
achava que se estivesse tão errado assim, os companheiros me chamariam a
atenção. Como ninguém me censurou... fui caindo mais e mais...
Sentindo-se arrastado para o
turbilhão alucinante, ainda teve tempo de gritar, com lágrimas na voz:
- Por que você não me repreendeu? Se
tivesse brigado comigo, me desmoralizado, agredido... teria sido diferente.
Baixando a cabeça, Anastácio chorou
amargamente. Aos poucos foi se acalmando. Precisava afastar-se dali, daquele
forró diabólico, para mergulhar em reflexões que jamais lhe haviam passado pela
cabeça, mas tinha medo das sombras e dos vultos ameaçadores que rondavam o
local. Tropeçou e caiu sobre uma coisa mole que pulsava. Eram batimentos
cardíacos desordenados. Horrorizado, viu que se tratava de um abortado, um
espírito que não conseguia desligar a mente da curetagem que sofrera e por isso
permanecia assim, na forma de tecidos retalhados, em cuja intimidade sua vida
psíquica pulsava em vibrações de dor e revolta.
- Essa, não! – exclamou comovido e ao
mesmo tempo irado com o destino, - Desse aí, tenho certeza de não carregar
nenhuma culpa. Nunca promovi nem permiti abortos.
Aquele punhado de tecidos
movimentou-se, então, e de suas entranhas saiu uma voz lamentosa que disse:
- Eu fui levado a um centro espírita
e fiquei esperando minha vez de ser atendido. Tinha certeza de que receberia
alívio e poderia me recompor. Esperei pacientemente, enquanto você doutrinava
um espírito que havia sido assassinado. Parece que era alguém muito importante
e você passou a maior parte da sessão conversando com ele fazendo perguntas e
mais perguntas. Quando finalmente chegou a minha vez, era hora de encerrar e
você não me deixou incorporar. Eu me desesperei, então, e me agarrei à médium,
mas você disse que devido ao avançado da hora ninguém mais poderia “receber”
nenhum espírito. Eu fiquei tão revoltado, com tanto ódio de você, que fui
arrastado para este lugar.
- Ah, lembro-me do caso – exclamou
Anastácio. – Mas, não tive culpa. Se os dirigentes não cuidam da disciplina, a
sessão vira bagunça.
- Eu não queria bagunçar nada – gemeu
o pobre espírito. – Queria apenas alívio para o meu sofrimento, que era grande
demais...
Anastácio começava a sentir-se na
condição de réu.
Que situação! Quando pensava que
seria recebido em regiões espirituais, mas elevadas, quem sabe até por algum
dos Ministros de Nosso Lar que viria parabenizá-lo por sua dedicação ao
Espiritismo ao longo de tantos anos... Em vez disso, ali estava, naquele
horrível lugar e, o pior, sentindo-se culpado.
Olhou para aquele ser pulsante,
perguntando a si mesmo: “O que será mais importante, a disciplina em nome da
caridade, ou a caridade em nome do amor?”
Levantou-se decidido a afrontar a
escuridão e os vultos rondantes, desde que conseguisse sair dali, daquele forró
infernal que começava a atraí-lo com força hipnótica. Segurou em algo para não
ser arrastado. Era o cabelo de uma mulher que gritou de dor.
Aquela voz...
Olhou-lhe o rosto e reconheceu
Marieta que fora uma das melhores palestrantes do Centro.
- Você aqui, Anastácio? – perguntou,
concluindo: - Não esperava que viesse para cá.
Já mais cauteloso. Anastácio
balbuciou:
- É... nem eu esperava. Quanto a
você, todos nós sabíamos como era ambiciosa e cruel. Pregava a bondade, mas
explorava seus empregados, não dispensando qualquer falta.
Marieta, sentindo-se arrastada pelo
turbilhão, agarrou-se a Anastácio, gritando:
- E você alguma vez me chamou às
falas? Alguma vez procurou mostrar-me que estava errada?
Ah, isso já era demais. Então ele
tinha culpa até pelos desmandos de alguém que conhecia a Doutrina melhor que
qualquer outro e se dedicava a fazer belas palestras sobre as virtudes evangélicas?
Mas antes que pudesse dizer qualquer coisa, a mulher concluiu:
- Se você ou qualquer outro dos
companheiros tivesse me repreendido, abrindo-me os olhos para a minha própria
conduta, com certeza eu teria repensado minhas posturas. Mas todos sempre
ficaram calados, me aplaudindo e parabenizando pelas palestras que fazia...
- Deus do céu! Exclamou Anastácio
para si mesmo. Será que ela tem razão?
Pensou um pouco e perguntou, quase
num murmúrio:
- Mas a caridade, a tolerância...
onde ficam?
Marieta, com voz embargada por um
soluço, perguntou:
- Acha que é caridoso ver alguém se
afundando nos próprios erros e não ajudar... nem que seja com uma chicotada?
Ia dizer mais alguma coisa, mas o
turbilhão hipnótico arrastou-a, deixando Anastácio boquiaberto, sem saber o que
pensar. Começou a correr, tentando fugir daquele local, mas escorregou e caiu
no pátio de um grande hospital. Ali, tudo era limpo e o silêncio contrastava com
o ambiente barulhento de onde viera. Um enfermeiro aproximou-se e convidou-o a
acompanhá-lo. Entraram num pavilhão onde algumas centenas de enfermos olhavam
para ele com ar de súplica, como se ele, Anastácio, pudesse ajudá-los. Antes
que tivesse tempo de externar seu pensamento, o enfermeiro disse:
- Não estranhes Anastácio. Estes
doentes são apenas parte daqueles que deixaram de ser atendidos, por sua
culpa...
- Por minha culpa? Agora, tudo é
culpa minha? – explodiu Anastácio, no auge dos conflitos que lhe desarmonizavam
o íntimo.
Sentia-se revoltado, não querendo
aceitar os novos enfoques que o vinham afrontando desde que desencarnara.
Indignado, por considerar-se
injustiçado, continuou:
- Creio que está havendo algum
terrível engano. Eu sempre procurei ser um bom espírita. Bem... quero dizer, eu
dediquei a minha vida inteira ao Espiritismo e, principalmente, à doutrinação
de espíritos sofredores.
- É verdade – respondeu o enfermeiro.
– Mas a sua tarefa sofreu muitos prejuízos por causa da sua vaidade e orgulho.
Ia responder à altura, insultado como
se sentia, diante daquela acusação. Ele, que sempre pregara a praticara a
humildade.
Mas qualquer coisa movia-se desagradavelmente
em sua consciência e preferiu ouvir calado.
-?!!!
- Sim, Anastácio. Sou eu o enfermeiro
que conduz os espíritos doentes ao socorro mediúnico no centro onde você
trabalhava. Os doentes deste pavilhão deveriam ter sido socorridos no grupo que
se desfez, em razão de sua vaidade.
- Mas, eu não sou vaidoso – murmurou.
- É sim, meu caro. Você foi sempre
considerado o melhor doutrinador da casa e essa idéia lhe subiu à cabeça. No
início, quando entrava na sala das reuniões suas vibrações eram de amor e
desejo de ajudar. Mas aos poucos começou a se inebriar com a admiração que sua
doutrinação provocava em algumas pessoas, e em si mesmo. Desde então, quando
entrava na sala, já era pensando em como falaria em tais e quais situações. Seu
pensamento, em vez de buscar o Alto, ficava girando em torno dos temas
brilhantes da doutrinação e, como você era o principal responsável pelo grupo,
este começou a decair... até a extinção.
Anastácio arregalou os olhos diante
do que começava a entender. Há poucas horas apenas, achava-se credor de
excelentes serviços prestados ao plano espiritual.... e agora...
O enfermeiro, no entanto, não deixou
que concluísse o pensamento, convidando:
- Sente-se ali, naquele banco, para
repousar um pouco, porque depois vou levá-lo até outro pavilhão. Lá você vai
encontrar o arquivo onde está o dossiê de suas últimas existências na Terra. Vai conhecer o montante
das faltas que cometeu em algumas das suas reencarnações e entender que durante
todos esses anos de dedicação ao Espiritismo, você não lhe fez qualquer favor.
Bem ao contrario, o favorecido foi você mesmo pela possibilidade de resgatar
parte das suas culpas, através de um trabalho de amor em benefício do próximo.
Além disso, foi a sua grande oportunidade de crescer em valores positivos.
Anastácio estava aturdido. Já lera
vários depoimentos de espíritos e deparavam receber louros no mundo espiritual
e deparavam com realidades amargas, mas jamais imaginara que ele próprio
passaria por tal situação. Acreditava sinceramente ser merecedor de créditos
especiais, e lhe informavam que sua conta estava em vermelho. Sentiu como se
algo rasgasse suas entranhas, despedaçasse suas emoções, e pusesse em perigo
seu equilíbrio mental. Sentou-se no banco que ficava sob uma frondosa árvore e
entrou em meditação. Reviu seus atos bons e maus e penetrou até o âmago de suas
intenções, descobrindo que raramente elas foram realmente puras; havia muita
hipocrisia, até mesmo dele para com ele próprio.
Oh, arrependimento profundo e
machucante! Ah, se pudesse voltar à vida, seria outro homem, um homem novo,
aquele da reforma interior que tanto pregara e só agora entendia que não havia
aplicado em si mesmo.
Lembrou-se dos casos de morte
clínica, em que o morto voltava à vida. Quem sabe, ele pudesse retornar...
Atirou-se de joelhos, baixou a fronte
com humildade, desta vez muito sincera, e começou a orar: “ Meu Deus, tem
piedade de mim, tem piedade de mim...”
Não conseguia dizer outra coisa.
Qualquer promessa lhe cheirava a hipocrisia. O rosto molhado de pranto, a alma
angustiada, sentia quanto era pequeno e digno de piedade, daquela mesma piedade
que antigamente lhe despertavam os espíritos maus e rebeldes, quando se
mostravam arrependidos...
Alguém segurou seu braço e sacudiu-o
com força dizendo:
- Anastácio! Acorda, Anastácio...
Para com isso. Você está chorando... deve ter sido algum pesadelo terrível...
Anastácio abriu os olhos. Custou a
entender que estivera sonhando; que tudo aquilo fora um pesadelo, um sonho
mau...
Sonho mau?
- Não, não foi um pesadelo –
respondeu Anastácio, amparado pelo o enfermeiro a lhe intuir. – Foi o sonho
mais lindo que já tive... o mais importante de toda a minha vida de encarnado.
“Fim”
Saara Nousiainem
Tô lascado!!!
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