No estado errante, antes de nova
existência corpórea, o Espírito tem consciência e previsão do que lhe vai
acontecer durante a vida? — Ele mesmo escolhe o gênero de provas que deseja
sofrer; nisto consiste o seu livre-arbítrio.
Não é Deus quem lhe impõe as
tribulações da vida, como castigo?
— Nada acontece sem a permissão de
Deus, porque foi ele quem estabeleceu todas as leis que regem, o Universo.
Perguntareis agora por que ele fez tal lei em vez de tal outra! Dando ao
Espírito a liberdade de escolha, deixa-lhe toda a responsabilidade dos seus
atos e das suas consequências; nada lhe estorva o futuro; o caminho do bem está
à sua frente, como o do mal. Mas se sucumbir, ainda lhe resta uma consolação, a
de que nem tudo se acabou para ele, pois Deus, na sua bondade, permite-lhe
recomeçar o que foi malfeito. É necessário distinguir o que é obra da vontade
de Deus e o que é da vontade do homem. Se um perigo vos ameaça, não fostes vós
que o criastes, mas Deus; tivestes, porém, a vontade de vos expordes a ele,
porque o considerastes um meio de adiantamento; e Deus o permitiu.
Se o Espírito escolhe o gênero de
provas que deve sofrer, todas as tribulações da vida foram previstas e
escolhidas por nós?
— Todas, não, pois não se pode dizer
que escolhestes e previstes tudo o que vos acontece no mundo, até as menores
coisas. Escolhestes o gênero de provas; os detalhes são consequências da
posição escolhida, e frequentemente de vossas próprias ações. Se o Espírito
quis nascer entre malfeitores, por exemplo, já sabia a que deslizes se expunha,
mas não conhecia cada um dos atos que praticaria; esses atos são produtos de
sua vontade ou do seu livre-arbítrio. O Espírito sabe que, escolhendo esse
caminho, terá de passar por esse gênero de lutas; e sabe de que natureza são as
vicissitudes que irá encontrar; mas não sabe quais os acontecimentos que o
aguardam. Os detalhes nascem das circunstâncias e da força das coisas. Só os
grandes acontecimentos, aqueles que influem no destino, estão previstos. Se tomas
um caminho cheio de desvios, sabes que deves ter muitas precauções, porque
corres o perigo de cair, mas não sabes quando cairás, e pode ser que nem caias,
se fores bastante prudente. Se, ao passar pela rua, uma telha te cair na
cabeça, não penses que estava escrito, como vulgarmente se diz.
Como o Espírito pode querer nascer
entre gente de má vida?
— E necessário ser enviado ao meio em
que possa sofrera prova pedida. Pois bem, o semelhante atrai o semelhante, e
para lutar contra o instinto do bandido é preciso que ele se encontre entre
gente dessa espécie.
Se não houvesse gente de má vida na
Terra, o Espírito não poderia encontrar nela o meio necessário a certas provas?
— E deveríamos lamentar isso ? É o
que acontece nos mundos superiores, onde o mal não tem acesso. É por isso que
neles só existem bons Espíritos. Fazei que o mesmo aconteça, bem logo, em vossa
Terra.
O Espírito, nas provas que deve
sofrer para chegar à perfeição, terá de experimentar todos os gêneros de
tentações? Deverá passar por todas as circunstâncias que possam provocar-lhe o
orgulho, o ciúme, a avareza, a sensualidade etc.?
— Certamente não, pois sabeis que há
os que tomam desde o princípio um caminho que os afasta de muitas provas. Mas
aquele que se deixa levar pelo mau caminho, corre todos os perigos do mesmo. Um
Espírito pode pedir a riqueza e esta lhe será dada; então, segundo o seu
caráter, poderá tornar-se avarento ou pródigo, egoísta ou generoso, ou ainda
entregar-se a todos os prazeres da sensualidade. Mas isso não quer dizer que
ele devia passar forçosamente por todas essas tendências.
Como pode o Espírito que, em sua
origem, é simples, ignorante e sem experiência escolher uma existência com
conhecimento de causa e ser responsável pela sua escolha?
— Deus supre a sua inexperiência,
traçando-lhe o caminho que deve seguir, como fazes com uma criança desde o
berço. Mas deixa-lhe pouco a pouco a liberdade de escolher, à medida que o seu
livre-arbítrio se desenvolve. E então que ele muitas vezes se extravia, tomando
o mau caminho, por não ouvir os conselhos dos bons Espíritos. É a isso que
podemos chamar a queda do homem.
Quando o Espírito goza do seu
livre-arbítrio, a escolha da existência corpórea depende sempre exclusivamente
da sua vontade ou essa existência pode lhe ser imposta pela vontade de Deus,
como expiação?
- Deus sabe esperar: não precipita a
expiação. Entretanto, pode impor certa existência a um Espírito, quando este,
por sua inferioridade ou má vontade, não está apto a compreender o que lhe
seria mais proveitoso, e quando vê que essa existência pode servir para a sua
purificação, o seu adiantamento, e ao mesmo tempo servir-lhe de expiação.
O Espírito faz a escolha
imediatamente após a morte?
– Não, pois muitos criem na
eternidade das penas e, como já vos foi dito, isso é um castigo.
O que orienta o Espírito na escolha
das provas?
– Ele escolhe as que podem servir de
expiação, segundo a natureza de suas faltas, e fazê-lo adiantar mais rapidamente.
Uns podem impor-se uma vida de misérias e provações para tentar suportá-la com
coragem outros querem experimentar as tentações da fortuna e do poder, bem mais
perigosas pelo abuso e o mau emprego que se lhes pode dar e pelas más paixões
que desenvolvem; outros, enfim, querem ser provados nas lutas que terão de
sustentar no contato com o vício.
Se alguns dos Espíritos escolhem o
contato com o vício como prova, há os que o escolhem por simpatia e pelo desejo
de viver num meio adequado aos seus gostos, ou para poderem entregar-se
livremente às suas inclinações materiais?
— Há, por certo, mas só entre aqueles
cujo senso moral é ainda pouco desenvolvido; a prova decorre disso, e eles a
sofrem por tempo mais longo Cedo ou tarde, compreenderão que a satisfação das
paixões brutais tem para eles consequências deploráveis, que terão de sofrer
durante um tempo que lhes parecerá eterno. Deus poderá deixá-los nesse estado
até que eles tenham compreendido suas faltas, pedindo por si mesmos o meio de
resgatá-las em provas proveitosas.
Não parece natural que os Espíritos
escolham as provas menos penosas?
– Para vós, sim; para o Espírito,
não. Quando ele está liberto da matéria, cessa a ilusão, e a sua maneira de
pensar é diferente
Comentário de Kardec: O homem, submetido
na Terra à influência das ideias carnais, só vê nas suas provas o lado penoso.
É por isso que lhe parece natural escolher as que, do seu ponto de vista, podem
subsistir com os prazeres materiais. Mas na vida espiritual ele compara os
prazeres fugitivos e grosseiros com a felicidade inalterável que entrevê, e
então, que lhe importam alguns sofrimentos passageiros? O Espírito pode
escolher a prova mais rude, e em consequência a existência mais penosa, com a
esperança de chegar mais depressa a um estado melhor, como o doente escolhe
muitas vezes o remédio mais desagradável, para se curar mais rapidamente.
Aquele que deseja ligar o seu nome à descoberta de um país desconhecido, não
escolhe um caminho coberto de flores, pois sabe os perigos que corre, mas sabe
também a glória que o espera, se for feliz.
A doutrina da liberdade de escolha
das nossas existências e das provas que devemos sofrer deixa de parecer
extraordinária, quando se considera que os Espíritos, libertos da matéria,
apreciam as coisas de maneira diferente da nossa. Eles anteveem o fim, e esse
fim lhes parece muito mais importante que os prazeres fugidios do mundo. Depois
de cada existência, vê em o progresso que fizeram e compreendem quanto ainda
lhes falta em pureza, para o atingirem. Eis porque se submetem voluntariamente
a todas as vicissitudes da vida corpórea, pedindo eles mesmos aquelas que podem
fazê-los chegar mais depressa. Não há, pois, motivo para nos admirarmos de que
o Espírito não dê preferência à existência mais suave. No seu estado de
imperfeição, ele não pode desfrutar a vida sem amarguras, que apenas entrevê. E
é para atingi-la que procura melhorar-se.
Não vemos diariamente exemplos de
coisas parecidas? O homem que trabalha uma parte de sua vida, sem tréguas nem
descanso, a fim de ajuntar o necessário para o seu bem-estar. não desempenha
uma tarefa que se impôs, com vistas a um futuro melhor? O militar que se
oferece para uma missão perigosa, o viajante que não enfrenta menores perigos,
no interesse da Ciência ou de sua própria fortuna, não se submetem a provas
voluntárias, que devem proporcionar-lhes honra e proveito, se as vencerem? A
que o homem não se submete e não se expõe, pelo seu interesse ou pela sua
glória? Todos os concursos não são provas voluntárias para melhorar na carreira
escolhida? Não se chega a nenhuma posição social de elevada importância, nas
ciências, nas artes, na indústria, sem passar pela série de posições
inferiores, que são outras tantas provas. A vida humana é, assim, o decalque da
vida espiritual. Nela encontramos, em menor escala, todas as peripécias
daquela. Se na vida terrena escolhemos muitas vezes as provas mais difíceis,
com vistas a um fim mais elevado, por que o Espírito, que vê mais longe, e para
quem a vida do corpo é apenas um incidente fugaz, não escolherá uma existência
penosa e laboriosa, se ela o deve conduzir a uma felicidade eterna? Aqueles que
dizem que, se pudessem escolher a sua existência, teriam pedido a de príncipes
ou milionários, são como os míopes que não veem o que tocam, ou como as
crianças gulosas, que respondem, quando perguntamos que profissão preferem:
pasteleiros ou confeiteiros.
Da mesma maneira, o viajante, no
fundo de um vale nevoento, não vê a extensão nem os pontos extremos da sua
rota; mas, chegando ao cume da montanha, seu olhar abrange o caminho percorrido
e o que falta percorrer, vê o final de sua viagem, os obstáculos que ainda tem
de vencer, e pode então escolher com mais segurança os meios de o atingir. O
Espírito encarnado é como o viajante no fundo do vale; desembaraçado dos liames
terrestres, é como o que atingiu o cume. Para o viajante, o fim é o repouso
após a fadiga; para o Espírito, é a felicidade suprema, após as tribulações e
as provas.
Todos os Espíritos dizem que, no
estado errante, buscam, estudam, observam, para fazerem suas escolhas. Não
temos um exemplo disso na vida corpórea? Não buscamos muitas vezes, através dos
anos, a carreira que livremente acabamos por escolher, porque a achamos a mais
apropriada aos nossos objetivos? Se fracassamos numa, procuramos outra. Cada
carreira que abraçamos é uma fase, um período da vida. Não empregamos cada dia
em escolher o que faremos no outro? Ora, o que são as diferentes existências
corpóreas para o Espírito, senão fases, períodos, dias da sua vida espírita que.
como sabemos, é a vida normal, não sendo a vida corpórea mais do que
transitória, passageira?
O Espírito poderia fazer a sua
escolha durante a vida corporal?
— Seu desejo pode ter influência.
Isso depende da intenção. Mas, no estado de Espírito, frequentemente vê as
coisas de maneira diferente. É o Espírito quem faz a escolha. Mas, ainda assim,
ele pode fazê-la nesta vida material, porque o Espírito tem sempre os momentos
em que se liberta da matéria.
Muitas pessoas desejam grandezas e
riquezas, mas não o será, por certo, como expiação nem como prova?
— Sem dúvida; a matéria deseja essa
grandeza, para gozá-la, e o Espírito a deseja, para conhecer-lhe as
vicissitudes.
Até que chegue ao estado de perfeita
pureza, o Espírito tem de passar constantemente por provas?
— Sim, mas elas não são como as
entendeis. Chamais provas às tribulações materiais; ora, o Espírito, chegando a
um certo grau, mesmo sem ser perfeito, não tem mais nada a sofrer. Mas tem
sempre deveres que o ajudam a se aperfeiçoar, e que não são penosas para ele, a
não ser os de ajudar os outros a se aperfeiçoarem.
O Espírito pode enganar-se, quanto à
eficácia da prova que escolher?
— Pode escolher uma que esteja acima
de suas forças, e então sucumbe. Pode também escolher uma que não lhe dê
proveito algum, como um gênero de vida ocioso e inútil. Mas, nesse caso,
voltando ao mundo dos Espíritos, percebe que nada ganhou, e pede para recuperar
o tempo perdido.
Ao que se devem as vocações de certas
pessoas e sua vontade de seguir uma carreira em vez de outra?
— Parece-me que podeis responder por
vós mesmos a esta questão. Não é a consequência de tudo o que dissemos sobre a
escolha das provas sobre o progresso realizado numa existência anterior?
Quando o Espírito estuda, na
erraticidade, as diversas condições em que poderá progredir, como julga poder
fazê-lo, se nascer entre canibais?
— Não são os Espíritos já adiantados
que nascem entre os canibais, mas os Espíritos da mesma natureza dos canibais,
ou que lhes são inferiores.
Comentário de Kardec: Sabemos que os
nossos antropófagos não estão no último grau da escala, e que há mundos onde o
embrutecimento e a ferocidade ultrapassam tudo o que existe na Terra. Esses
Espíritos são, portanto, ainda inferiores aos mais inferiores do nosso mundo, e
vir para o meio dos nossos selvagens é para eles um progresso, como seria um
progresso para os nossos antropófagos exercer entre nós uma profissão que não
os obrigasse a derramar sangue. Se eles não visam a mais alto, é porque a sua
inferioridade moral não lhes permite compreender um progresso mais completo. O
Espírito não pode avançar senão gradualmente; não pode transpor de um salto a
distância que separa a barbárie da civilização. E está nisso uma necessidade da
reencarnação. que se mostra verdadeiramente de acordo com a justiça de Deus. De
outra maneira, em que se transformariam esses milhões de seres que morrem
diariamente no último estado de degradação, se não tivessem meios de se elevar?
Por que Deus os teria deserdado dos favores concedidos aos demais?
Os Espíritos procedentes de um mundo
inferior à Terra, ou de um povo muito atrasado, como os canibais, poderiam
nascer entre os povos civilizados?
— Sim, há os que se extraviam ao
quererem subir muito alto, mas ficam deslocados entre vós, porque têm hábitos e
instintos que se chocam com os vossos.
Comentário de Kardec: Esses seres nos
dão o triste espetáculo da ferocidade em meio da civilização. Retornando para o
meio dos canibais, isso não será um retrocesso, pois não farão mais do que
retomar o seu lugar e talvez ainda com proveito.
Um homem pertencente a uma raça
civilizada poderia, por expiação, reencarnar-se num raça selvagem?
— Sim, mas isso depende do gênero da
expiação. Um senhor que tenha sido duro para os seus escravos poderá tornar-se
escravo e sofrer os maus tratos que infligiu a outrem. Aquele que mandou numa
época, pode, em outra existência, obedecer aos que se curvaram ante a sua
vontade. É uma expiação, se ele abusou do poder, e Deus pode determiná-la. Um
bom Espírito pode, para os fazer avançar, escolher uma vida de influência entre
esses povos. Então se trata de uma missão.
Fonte: Escolha das Provas - Livro dos
Espíritos - Perguntas de 258 a 273