Dia 2 de outubro,
comemora-se o aniversário de Gandhi; dia 3 de outubro o de Kardec e dia 4 de
outubro é o dia de Francisco de Assis. O que pode haver em comum entre essas
três pessoas, de épocas tão diferentes, de tradições espirituais diversas e que
ficam tão próximas no calendário? Justamente é isso que o diálogo
inter-religioso permite dizer – aliás é esse próprio diálogo o objeto desse
artigo.
Sobre esse tema falei
na Festa da Índia, no Palácio de Cristal em Petrópolis, que se deu nos dias 2,
3 e 4 de outubro. Falei bem no dia 3, o de Kardec – o mais desconhecido e mesmo
silenciado dos três.
Para mim, entre as
condições essenciais para um diálogo com o outro é reconhecer o valor
intrínseco das diversas tradições espirituais, as verdades e as riquezas
imanentes em todas elas. Não se trata apenas de “tolerar”, com um certo desdém,
no fundo desqualificando o outro. Ou dizer: “respeito, cada um está num estágio
evolutivo.” Nessa frase está implícita a ideia de que o outro está num estágio
inferior.
Por outro lado, só se
pode ir para o diálogo de fato, quem reconhece os problemas de sua própria
religião. Todas as tradições têm abusos naturalmente humanos, têm fanatismos e
posições a serem criticadas. Assim, o diálogo inter-religioso nos arranca da
postura do fanatismo e do exclusivismo, reconhecendo valores alheios e
fraquezas próprias. Mas, também, dialogar não é perder a sua identidade. Não
significa sair de seu trilho, para percorrer outro.
E esses três
personagens, o que fizeram?
Em plena Idade Média,
quando os cristãos estavam promovendo as Cruzadas – leia-se guerras sangrentas
– contra os muçulmanos, Francisco de Assis se dirigiu ao Sultão Al-Kamil e teve
um diálogo amistoso com ele. Claro que isso se deu no contexto da época, em que
um cristão como Francisco se sentia no dever de tentar convencer o outro a
seguir o Cristo. Mas diante do antagonismo violento em que as religiões se
digladiavam, a tentativa de diálogo de Francisco revela um passo à frente de
seu tempo.
Ao mesmo tempo, sua
vida inteira era um exemplo de vida cristã numa Igreja e num mundo que se
diziam cristãos, mas viviam muito distantes dos ensinamentos de Jesus. Se este
havia pregado fraternidade, desprendimento e paz, vivia-se em divisão, luxo,
luxúria e guerras…
Então, já se destaca
num Francisco medieval essa atitude que nos parece tão necessária à própria
sobrevivência das diversas tradições espirituais – a salvação de sua essência,
com a crítica aos abusos cometidos em seu nome. Francisco vivia a essência do
cristianismo, criticando com seu exemplo os desvios dos ensinos de Jesus.
Já Kardec, que também
tomava o exemplo de Jesus como modelo e inspiração para a moral espírita, não
pretendia estabelecer uma nova religião, mas ajudar a todas através da
demonstração científica de que a imortalidade da alma – comum a todas as
tradições espirituais do planeta – era algo que poderia ser apalpado através
dos fenômenos mediúnicos. Pensava com isso – talvez um pouco ingenuamente,
porque todos se recusaram e se recusam a aceitar essa proposta – que as pessoas
poderiam seguir cultivando sua fé católica, protestante, judaica, muçulmana… e
serem ao mesmo tempo espíritas. Pregando uma ética cristã, que segundo ele
estaria igualmente presente nas diversas religiões, uma ética de caridade,
fraternidade, amor universal, haveria aí e na evidência da imortalidade pontos
de encontro e de diálogo entre todas elas.
No Livro dos Espíritos,
está escrito que a verdade está em toda a parte. E no Evangelho segundo o
Espiritismo, Kardec menciona essa ideia das pessoas serem espíritas sem
abandonarem suas tradições. Isso não deu certo talvez por três motivos. As
religiões não querem provas científicas de nada. Preferem o mistério. Segundo,
houve tanta perseguição e oposição, sobretudo da Igreja Católica em relação ao
espiritismo (isso hoje felizmente está superado), que se criou uma divisão e se
empurrou o espiritismo a modelar uma identidade religiosa própria. Embora no
Brasil hoje existam muitos espíritas-católicos ou muitos católicos-espíritas e
o próprio Espiritismo brasileiro ser um sincretismo com o catolicismo. E
terceiro, conforme Kardec foi avançando na configuração da visão espírita de
mundo, essa visão foi incluindo algumas ideias contrárias aos dogmas
estabelecidos de outras tradições. Sobretudo a reencarnação se mostrou como
algo inaceitável pela maioria dos cristãos. Embora, para Kardec, a reencarnação
fosse algo também demonstrável e teria assim a força de mudar dogmas
estabelecidos. As pesquisas de Ian Stevenson e sua equipe e parceiros a partir
da segunda metade do século XX, que fornecem robustas evidências da
reencarnação, ainda não foram capazes nem de atingir os firmes dogmas
materialistas da ciência oficial, nem os firmes dogmas das religiões
não-reencarnacionistas. As tradições orientais – reencarnacionistas na sua
quase totalidade – não se interessam pelo discurso racionalista de Kardec e
olham com algum desdém para uma proposta tão nova, tão democrática, tão
acessível, diante das milenares, iniciáticas e complexas heranças do Oriente.
Kardec assim é o que
permanece mais rejeitado para um diálogo. Não fosse esse evento da Índia,
organizado por um espírita, nosso amigo Sandro Rodrigues, não sabemos se os
espíritas estariam representados. Tenho sido testemunha e vítima de inúmeros
casos de silenciamento do espiritismo, no diálogo entre as religiões e entre as
tradições espirituais constituídas. Pode-se alegar que o espiritismo não seja
religião (para alguns espíritas é, para outros não), mas o mesmo acontece com o
budismo, que se afirma muito mais uma filosofia. E no entanto, ele é chamado,
respeitado e está sempre presente em todos os diálogos.
E Gandhi? Gandhi também
repetia a mesma postura de Francisco e Kardec, criticando o criticável e
salvando a essência. Dizia ele ser ao mesmo tempo hindu, muçulmano, judeu,
cristão… e tinha essa frase que diz tudo: “Após estudos e muitas experiências,
cheguei à conclusão que 1) todas as religiões são verdadeiras; 2) todas as
religiões contêm em si alguma margem de erro; 3) todas as religiões são para
mim quase tão queridas quanto o meu próprio hinduísmo, principalmente na medida
em que todos os seres humanos deveriam ser para mim tão queridos quanto meus
próprios parentes. Minha veneração pessoal por outros credos é a mesma que dedico
à minha própria fé.”
Essa postura de Gandhi
não é algo demagógico, mas sincero, profundo, vivencial.
O diálogo
inter-religioso nos permite vivenciar experiências e manifestações de outras
correntes, sem abdicar de nossa escolha do caminho, enriquecendo nossa
espiritualidade de outros matizes. Assim, como espírita, nada me impede de
fazer uma meditação budista, cantar um negro spiritual ou orar um poema sufi…
Deus está em tudo.
Fonte: Universidade
Livre-Pampédia.