Naquela
manhã, sentiu vontade de dormir um pouco mais. Estava cansado, tinha deitado
muito tarde e não havia dormido bem. Mas logo abandonou a ideia de ficar um
pouco mais na cama, e levantou-se, pensando nas muitas coisas que precisava
fazer na empresa.
Lavou o
rosto e fez a barba correndo, automaticamente. Não prestou atenção no rosto
cansado e nem nas olheiras escuras, resultado de noites mal dormidas.
Engoliu o
café e saiu resmungando baixinho um "bom dia", sem muita convicção.
Desprezou os lábios da esposa, que se ofereciam para um beijo de despedida. Não
entendia porque ela se queixava tanto da ausência dele e vivia pedindo mais
tempo para ficarem juntos.
Ele estava
conseguindo manter o elevado padrão de vida da família, não estava? Isso não
bastava?
Entrou no
carro e saiu. Pegou o telefone celular e ligou para sua filha. Sorriu quando
soube que o netinho havia dado os primeiros passos. Ficou sério quando a filha
lembrou-o de que há tempos ele não aparecia para ver o neto e o convidou para
almoçar.
Ele relutou
bastante: sabia que iria gostar muito de estar com o neto. Mas não podia,
naquele dia, sair da empresa. Quem sabe no próximo final de semana?
Chegou à
empresa e mal cumprimentou as pessoas. A agenda estava lotada, e era muito
importante começar logo a atender seus compromissos, pois tinha plena convicção
de que pessoas de valor não desperdiçam seu tempo com conversa fiada.
Na hora do
almoço, pediu à secretária para trazer um sanduíche e um refrigerante diet. O
colesterol estava alto, precisava fazer um check-up, mas isso ficaria para o
mês seguinte.
Começou a
comer enquanto lia alguns papéis que usaria na reunião da tarde. Nem observou
que tipo de lanche estava mastigando.
Enquanto
relacionava os telefonemas que deveria dar, sentiu um pouco de tontura, a vista
embaçou. Lembrou-se do médico advertindo-o, alguns dias antes, quando tivera os
mesmos sintomas, de que estava na hora de fazer um check-up.
Mas ele logo
concluiu que era um mal estar passageiro, que seria resolvido com um café
forte, sem açúcar.
Terminado o
"almoço", escovou os dentes e voltou ao trabalho. "a vida
continua", pensou. Mais papéis para ler, mais decisões a tomar, mais
compromissos a cumprir.
Saiu para
uma reunião já meio atrasado. Não esperou o elevador. Desceu as escadas pulando
os degraus de dois em dois. Entrou no carro, deu a partida e, quando ia engatar
a marcha, sentiu de novo o mal estar e agora com uma dor forte no peito.
O ar começou
a faltar... A dor foi aumentando... O carro desapareceu... Os outros carros
também... Os pilares, as paredes, a porta, a claridade da rua, as luzes do
teto, tudo foi sumindo diante de seus olhos, ao mesmo tempo, que surgiam cenas
de um filme que ele conhecia bem.
A esposa, o
netinho, a filha e, uma após outra, todas as pessoas de que mais gostava.
Por que
mesmo não tinha ido almoçar com a filha e o neto? O que a esposa tinha dito à
porta de casa quando ele estava saindo, hoje de manhã?
A dor no
peito persistia, mas agora outra dor começava a perturbá-lo: a do
arrependimento.
Ele não
conseguia distinguir qual era a mais forte: a dor da coronária entupida ou a de
sua alma rasgando.
Escutou o
barulho de alguma coisa quebrando dentro de seu coração, e de seus olhos
escorreram lágrimas silenciosas...
Queria
viver, queria ter mais uma chance, queria voltar para casa e beijar a esposa,
abraçar a filha, brincar com o neto...
Queria...
Queria... Mas não havia mais tempo...
Quantas
pessoas estão vivendo hoje seu último dia de existência na Terra e não sabem
disso!
Quantas saem
do corpo físico diariamente e deixam muitas coisas por fazer!
Certamente
os compromissos profissionais, a limpeza da casa, as compras, os pagamentos,
outras pessoas farão.
Mas as questões
afetivas, as coisas do coração, somente cada um pode deixar em dia. Aquela
visita a um amigo, o abraço de ternura num familiar querido, um beijo carinhoso
na esposa ou esposo, uma palavra atenciosa a alguém que precisa, um tempo a
mais para dedicar aos amores...
Desconheço o Autor
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