Acordar. Respirar. Pensar. Existir.
Não há um verbo que não doa durante o luto. Talvez dormir alivie, que é quando
a dor adormece. Momento em que o medo desperta: será preciso enfrentar o dia
seguinte.
Perder quem amamos é morrer um pouco,
mesmo que o coração insista em bater. O luto nos torna um lugar ruim. Queremos
fugir de nós mesmos, emprestar outra vida, perder a memória, trocar de papel.
Qualquer coisa que nos tire a dor com a mão, que nos salve do horror de sentir
que alguém foi amputado de nós. Não há alívio imediato.
A morte é uma verdade disfarçada de
absurdo. Não se arrepende, não volta atrás, é desfecho. O verdadeiro “para
sempre”. É telefone que não toca, silêncio que ensurdece, pesadelo que não
acaba, falta que jamais deixará de ser.
Enlutar-se é se mudar para uma
espécie de cela blindada, da qual saímos somente para intermináveis e dolorosos
banhos de sol. Uma solitária para a qual queremos voltar logo – embora triste e
sombria, ela ainda é o lugar onde nos sentimos menos desconfortáveis.
Eu me lembro de vagar pela cidade
como numa cena sem áudio. Olhava ao redor e me perguntava com que direito as
pessoas sorriam, se dentro de mim as luzes estavam apagadas. É assim até que a
gente se acostume. A morte se repete muitas vezes. Ao acordar, está lá a morte
de novo. A cada lembrança, outra morte. Até que em nós ela morra de fato — e
isso demora.
Quando meu filho nasceu foi parecido.
Só que era vida. Toda hora a vida de novo. A cada instante olhar e ver: nasceu,
é meu filho. Respira, mexe, chora, mama, é vida.
Se nascimento e morte são duas
verdades que crescem diante de nós, até que possamos de fato acreditar, calhou
que na vida experimentei os dois de forma simultânea. Eu estava grávida quando
perdi o pai do meu filho que iria nascer. Foi viuvez, mas também foi aborto: a
frase cortada em pleno gerúndio. Com o coração dele que parou de bater, morreu
nosso futuro.
Cris estava grávida quando Gui, o pai
do seu filho, faleceu. “Com o coração dele que parou de bater, morreu nosso
futuro”, conta.
O que mais doía no luto era não
conseguir que as pessoas sentissem a minha dor. Falei compulsivamente. Escrevi
de forma obsessiva. Até que as pessoas também chorassem. E elas choraram – mais
as suas dores que as minhas, é verdade, mas isso também é empatia. E quando
cada momento latente de falta se transformava em um texto delicado, quando as
palavras conseguiam fazer o outro vestir a minha dor, a tristeza virava
alegria: que alívio me sentir compreendida. Numa espécie de alquimia
incidental, transmutei dor em sorriso.
Veja você como a vida é chegada numa
ironia: o luto é praticamente um parto. É preciso reaprender a viver sem a
pessoa que se foi, como quem nasce de novo – e quem permanecerá o mesmo? Viver
o luto é renascer – e nascer é exercício solitário. É preciso olhar o mundo
novamente e re-conhecer-se diante dele.
Mas, como criança que cresce, o luto
demanda tempo. Enquanto isso, não sai por aí despertando sorrisos. Num mundo
programado para a felicidade, o luto constrange. Abre um hiato de mal-estar. A morte
é certeza demasiado espinhosa para que se toque nela com naturalidade.
O momento menos solitário talvez seja
a primeira semana, o primeiro mês, enquanto duram os rituais de despedida.
Passam-se alguns dias e todos retomam suas vidas. Ninguém mais quer falar sobre
isso. A não ser o próprio enlutado, que não quer falar de outra coisa. Agora é
que a dor vai começar. E parece que não vai parar nunca. Talvez fique para
sempre mesmo: a perda vai se alojando no corpo, como uma bala encapsulada, até
não incomodar mais. Com paciência, o tempo muda os afetos de lugar. Passa a
morar em mim quem se foi.
E então a dor me leva a outros
lugares. Abre meus olhos, me ensina a mudar de assunto. E assim,
distraidamente, vai me mostrando a vida de novo – agora outra, porque sempre é
tempo para mudar.
A perda pede recolhimento como um
pós-operatório, ou reincide. A ferida se abre de novo. É preciso respeitar o
luto (e entregar-se a ele, sem medo) até que chegue sua hora de ir embora. Cada
um descobre sua forma de colocar a dor para trabalhar em outra direção. A falta
pode ser, então, bastante reveladora.
Quando pequenos, aprendemos com os
livros infantis. Depois de adultos, as pessoas que se vão passam a nos fazer
pensar sobre nossas vidas. Lembram-nos a urgência de amar quem está vivo e
perto. E ensinam que fazer escolhas não precisa ser tão sofrido, nem carece do
peso da certeza de ser para sempre. Nenhum de nós é para sempre.
A vida é curta, sim. Não vem com
prazo de validade nem traz garantias. Cada fim de ano é oportunidade única para
afetos reunidos – riso e choro, inclusive. Comemore. Mesmo com um lugar vago à
mesa, a família está ali. O peru está de dar água na boca. As crianças correm
lá fora. O brinde à vida não pode esperar.
Em 2008, a publicitária e escritora
Cris Guerra lançou o livro “Para Francisco“, no qual apresenta ao filho o pai
que ele não conheceu (Guilherme morreu no final da gravidez de Cris).
Autor: Cris Guerra
Fonte: Mensagem Espirita.
www.mensagemespirita.com.br/
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