Eles se julgavam ainda internados num
hospital da terra: - A comida aqui e muito regulada, mas, eu creio que no
interior deste quarto você mantenha escondido algum salgado! - Arriscou Jaime.-
Como poderia dispor de alguma guloseima! -Respondeu Afrânio -Se a minha filha
tem sido a única a visitar-me e ainda o tem feito pela madrugada, com certeza
para ludibriar o responsável pela portaria! Mesmo assim confesso que hoje
excepcionalmente amanheci feliz ao receber a visita dessa criatura tão
maravilhosa que nunca poupou atenções a este pai desnaturado.
- Como pai desnaturado se você tem se
referido a sua filha com extremo carinho?- Na verdade meu ingresso neste
hospital deve-se aos meus desvios de comportamento que balançou toda estrutura
do meu lar, passei o maior vexame ao sofrer o enfarte no interior de uma dessas
casas de curta permanência. Na ocasião estava acompanhado por uma jovem que
auxiliava nos afazeres domésticos em minha residência e para piorar a situação
fui obrigado a observar o olhar atônito de toda a família, enquanto eu, embora
vivo, pivô de todo aquele escândalo, jazia inerte, sim, completamente
paralisado, estirado no leito revolto do pecado. Você tinha que ver meu amigo,
os impropérios que fui obrigado a ouvir, principalmente proferidos por minha
mulher. Se não fosse a intervenção de alguns funcionários do lupanar e de minha
filha, ela teria me agredido, ali mesmo.
- A propósito qual foi a reação de
sua filha diante da cena patética ao vê-lo deitado, com perdão da palavra...No
leito nupcial?-indagou Jaime com um sorriso de malícia. E você teve muita sorte
por não haver morrido naquele momento, se não, creio que teria ido direto para
o inferno!- Se você quer saber meu amigo -rebateu Afrânio irritado- Eleonora
não deixou transparecer qualquer laivo de crítica contra mim, mas chorava
copiosamente, chegando a demonstrar pelo seu desespero, albergar a infeliz ideia,
que de fato, eu estaria morto! E tem mais, nessa última visita que recebi de
minha filha ficou evidenciado o sentimento que ela nutre por este velho pai!
Jaime curioso para inteirar-se sobre o que a filha do amigo havia dito, olhou
de relance pelas mobílias, deteu-se na fruteira vazia e indagou:
- Afinal de contas o que foi que sua
filha afirmou que o deixou tão embevecido? Na verdade, sou obrigado a
reconhecer que você, em se tratando de familiares está bem servido, pois os
meus, assim que se deu a minha internação neste hospital foram gozar férias na
Europa, torrar o meu dinheiro!
- O que Eleonora segredou-me confesso
que me levou as lágrimas. Ela depois de fitar-me nos olhos demoradamente,
beijou minha face e afirmou lacrimosa: Meu pai, se eu soubesse que a dor da
saudade seria tão grande assim, eu teria multiplicado por mil o amor que lhe
dediquei enquanto o senhor estava lá em casa!- E quanto a você limitou-se a
ouvi-la?-insistiu Jaime.- Não meu amigo, - retrucou Afrânio - Aleguei não
merecer um sentimento tão puro assim, já que meu comportamento diante de toda
família fora simplesmente vergonhoso!- Ainda bem que você reconhece! -exclamou
Jaime- para o seu erro não há perdão!- Eu também pensava dessa forma até minha
filha afirmar que o Amor ao nascer passa a ser imortal tanto quanto a vida e
que tal sentimento independe do comportamento do Ser amado! Com isso só me
resta acreditar que o coração que ama verdadeiramente não tem espaço para
divagações de ordem negativa!
- Jaime esfregava o próprio ventre
avantajado, dando sinais de impaciência. Afinal de contas as horas matinais
avançavam e nem sinal da merendeira com o habitual café da manhã.- O amigo me
parece nervoso - observou o pai de Eleonora - qual o problema?- Já vi que minha
sina é morrer de inanição; nem mesmo os responsáveis pela cozinha se dignaram a
me ajudar quanto ao fornecimento suplementar de alimento, mediante soma compensatória.-
Você tentou suborná-los? - indignou-se Afrânio.- E daí? - retrucou o obeso -
prefiro dispor de uma certa quantia a viver nesse regime forçado. O que mais me
aborreceu foi o sorriso deslavado desses serviçais pobretões, quando lhes
ofereci a propina. Fiquei transtornado com o pouco caso que fizeram da
proposta; se eles conhecessem o meu potencial financeiro, assim não
procederiam, pois temeriam a perda do emprego.- Por que razão deveriam temer?
- Você não desconhece que esses
hospitais sobrevivem as expensas de subsídio governamental e minha influência
nessa área é muito grande.- Não creio que você teria a coragem de provocar o
corte da verba de um hospital.- Ora meu amigo -respondeu Jaime abrindo os
braços - Minha intervenção nesse campo é tão verdadeira quanto os processos que
respondo atualmente por desvio do dinheiro público!- As acusações são
procedentes? - arregalou os olhos Afrânio.- Claro que são! Não vou esconder de
você que enriqueci, usando esse expediente nas minhas atribuições de parlamentar.-
Isso não lhe pesa na consciência?- Tenho pesadelos todas as noites - respondeu
Jaime cabisbaixo.- Como são esses pesadelos?- São tão horríveis que, às vezes,
chego a bendizer quando sou acometido pela insônia. Nas oportunidades que
consigo conciliar o sono, meu martírio toma proporção gigantesca. Geralmente
sou levado por forças desconhecidas a caminhar pela madrugada, em ruas
sombrias, onde se encontram adormecidas, sobre trapos e papelões, mães
magérrimas em cujos dorsos se acotovelam crianças sujas e esquálidas, formando
verdadeiros amontoados de abandono e fome.
Depois de pequena pausa para
refazer-se, Jaime prosseguiu:- Como se não bastasse a visão do cenário
miserável que se afigura, essas crianças, ao invés de ressonar, que seria o
procedimento normal, gemem como se estivessem suplicando por socorro. Vozes acusatórias
ecoam nos meus ouvidos com insistência! Está vendo? Está vendo? Outras vezes,
essas forças me obrigam a caminhar saltitando sobre os enfermos que se estendem
nos corredores do hospital sem recursos; ali me apontam a ausência de remédios
que seriam indispensáveis para a manutenção da vida; em seguida, me conduzem ao
velório da Casa de Saúde, para que eu anote o desespero de criaturas a se
despedirem, debruçadas, sobre os caixões de velhos e crianças. O pior de tudo é
quando essas forças desconhecidas me forçam a pedir desculpas para os chorosos
circunstantes, impelindo-me a confessar: Sou eu o culpado!- Que horror! -
admirou-se Afrânio - suas noites se constituem em verdadeiro suplício. Em seu
lugar, por certo, eu teria enlouquecido!
- Quero lhe confessar, amigo. Na
realidade, esses pesadelos já perduram por tempo incomensurável, ocasionando
distúrbios que me levaram a conviver com criaturas esquizofrênicas em pátio
lodoso de um sanatório. Lá os internos se intitulavam meus inimigos, fazendo-me
passar por toda a sorte de acicates e humilhações, até que um bom homem
compadecendo-me de minhas agruras burlou a vigilância do manicômio (trevas) transferindo-me
para cá, com o compromisso de notificar meus familiares sobre meu novo
paradeiro.
Espero que você guarde sigilo sobre
esses relatos que acabo de fazer, pois nem mesmo à minha esposa dei a conhecer
tais detalhes, principalmente no que diz respeito às práticas que me levaram à
fortuna.- Ela nunca desconfiou? - perguntou Afrânio de olhos arregalados.- Creio
que sim, mas talvez tenha praticado a silenciosa conivência em nome do luxo, do
conforto que sempre lhe proporcionei. Nossa casa se constitui num verdadeiro
salão de festas, e Otília faz questão de esmerar-se como anfitriã sem qualquer
economia.
- Se eu lhe fizer uma pergunta
atrevida, você não se aborrecerá?- Fique à vontade - disse Jaime.- Como você
convive com o fato de gozar da luxúria e da abastança, sabendo que para tanto
está desnutrindo crianças, comprometendo seu desenvolvimento e por consequência
ocasionando retardo irreversível? Nesse momento, Jaime crispou os dedos
parecendo querer encrava-los nas palmas das mãos. Virou o queixo sobre o ombro
esquerdo, precipitou-se ao chão a espumar. Afrânio descontrolou-se e se pôs a
gritar, enquanto o amigo político permanecia em convulsão.
Álvaro Basile Portughesi - Jornal
Espírita - julho/04
Fonte- A Casa do Espiritismo
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