– Minha história é muito diferente. A
queda que experimentei apresenta características diversas e, a meu ver, muito
graves.
E, atendendo-nos a expectativa,
prosseguiu, narrando:
– “Também parti de “Nosso Lar”, no
século findo, após receber valioso patrimônio instrutivo dos nossos assessores.
Segui enriquecido de bênçãos. Uma de nossas beneméritas Ministras da Comunicação
presidiu, em pessoa, as medidas atinentes à minha nova tarefa. Não faltaram
providências para que me felicitassem a saúde do corpo e o equilíbrio da mente.
Após formular grandes promessas aos nossos maiores, parti para uma das grandes
cidades brasileiras, em serviço de nossa colônia. O casamento estava em meu
roteiro de realizações. Ruth, minha devotada companheira, incumbir-se-ia de
colaborar comigo para melhor desempenho das tarefas.
“Cumprida a primeira parte do
programa, aos vinte anos de idade fui chamado à tarefa mediúnica, recebendo
enorme amparo dos benfeitores invisíveis. Recordo ainda a sincera satisfação
dos companheiros do grupo doutrinário. A vidência, a audição e a psicografia,
que o Senhor me concedera, por misericórdia, constituíam decisivos fatores de
êxito em nossas atividades.
A alegria de todos era inexcedível.
Entretanto, apesar das lições maravilhosas de amor evangélico, inclinei-me a
transformar minhas faculdades em fonte de renda material. Não me dispus a
esperar pelos abundantes recursos que o Senhor me enviaria mais tarde, após meus
testemunhos no trabalho, e provoquei, eu mesmo, a solução dos problemas
lucrativos. Não era meu serviço igual a outros?
Não recebiam os sacerdotes
católicos-romanos a remuneração de trabalhos espirituais e religiosos? Se todos
pagávamos por serviços ao corpo, que razões haveria para fugir ao pagamento por
serviços à alma? Amigos, inscientes do caráter sagrado da fé, aprovavam-me as
conclusões egoísticas. Admitíamos que, no fundo, o trabalho essencial era dos
desencarnados, mas também havia colaboração minha, pessoal, como intermediário,
pelo que devia ser justa a retribuição.
“Debalde, movimentaram-se os amigos
espirituais aconselhando-me o melhor caminho. Em vão, companheiros encarnados chamavam-me
a esclarecimento oportuno. Agarrei-me ao interesse inferior e fixei meu ponto
de vista. Ficaria definitivamente por conta dos consulentes. Arbitrei o preço
das consultas, com bonificações especiais aos pobres e desvalidos da sorte, e
meu consultório encheu-se de gente.
“Interesse enorme foi despertado
entre os que desejavam melhoras físicas e solução de negócios materiais. Grande
número de famílias abastadas tomou-me por consultor habitual, para todos os problemas
da vida. As lições de espiritualidade superior, a confraternização amiga, o
serviço redentor do Evangelho e as preleções dos emissários divinos ficaram à
distância. Não mais a escola da virtude, do amor fraternal, da edificação
superior, e sim a concorrência comercial, as ligações humanas legais ou
criminosas, os caprichos apaixonados, os casos de polícia e todo um cortejo de misérias
da Humanidade, em suas experiências menos dignas.
“Transformara-se completamente a
paisagem espiritual que me rodeava. À força de me cercar de pessoas criminosas,
por questões de ganho sistemático, as baixas correntes mentais dos inquietos
clientes encarceraram-me em sombria cadeia psíquica.
Cheguei ao crime de zombar do
Evangelho de Nosso Senhor Jesus, esquecido de que os negócios delituosos dos
homens de consciência viciada contam igualmente com entidades perniciosas, que
se interessam por eles nos planos invisíveis. E transformei a mediunidade em
fonte de palpites materiais e baixos avisos. ”
Nesse momento, os olhos
do narrador cobriram-se de súbita vermelhidão, estampando-se lhe fundo horror
nas pupilas, como se estivesse revivendo atrozes dilacerações.
– Mas a morte chegou, meus amigos, e
arrancou-me a fantasia – prosseguiu mais grave –. Desde o instante da grande
transição, a ronda escura dos consulentes criminosos, que me haviam precedido
no túmulo, rodeou-me a reclamar palpites e orientações de natureza inferior.
Queriam notícias de cúmplices encarnados, de resultados comerciais, de soluções
atinentes a ligações clandestinas.
Gritei, chorei, implorei, mas estava
algemado a eles por sinistros elos mentais, em virtude da imprevidência na
defesa do meu próprio patrimônio espiritual. Durante onze anos consecutivos, expiei
a falta, entre eles, entre o remorso e a amargura.
Acelino calou-se, parecendo mais
comovido, em vista das lágrimas abundantes. Fundamente sensibilizado, Vicente
considerou:
– Que é isso? Não se atormente assim.
Você não cometeu assassínios, nem alimentou a intenção deliberada de espalhar o
mal.
A meu ver, você enganou-se também,
como tantos de nós. Acelino, porém, enxugou o pranto e respondeu:
– Não fui homicida nem ladrão vulgar,
não mantive o propósito íntimo de ferir ninguém, nem desrespeitei alheios
lares, mas, indo aos círculos carnais para servir às criaturas de Deus, nossos irmãos,
auxiliando-os no crescimento espiritual com Jesus, apenas fiz viciados da
crença religiosa e delinquentes ocultos, mutilados da fé e aleijados do
pensamento. Não tenho desculpas, porque estava esclarecido; não tenho perdão,
porque não me faltou assistência Divina.
E, depois de longa pausa, concluiu
gravemente:
– Podem avaliar a extensão da minha
culpa?
Da obra: OS MENSAGEIROS. Chico
Xavier-André Luiz
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